quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Um professor coimbrão renascentista


 

                                              B A R T O L O M E U    F I L I P E

 

    TRACTADO  DEL  CONSEIO  Y  DE  LOS  CONSEIEIROS DE  LOS  PRINCIPES.  SEGUNDA  IMPRESSION.  TURINO, GIO: UINCENZO  DEL  PERNETTO, 1589. (1)

 

     Como ressalta da portada, trata-se da segunda edição desta obra do Dr. Bartolomeu Filipe. A primeira edição saiu dos prelos de António de Mariz, em Coimbra, em 1584, e vem descrita no catálogo da Biblioteca de M. Fernando Palha, sob o nº 411 e  António Joaquim Anselmo descreve-a sob o nº 885 ( In BIBLIOGRAFIA DAS OBRAS IMPRESSAS EM PORTUGAL NO SÉCULO XVI, pág. 256).

        Ao frontispício segue-se a carta em italiano do impressor, dirigida ao autor, datada de Turim,19 de Fevereiro de 1589, a que se segue a carta nuncupatória, dirigida ao Cardeal Alberto, que então governava Portugal em nome do rei espanhol. No verso do último fólio da carta, começa o índice alfabético dos autores citados e no verso do último fólio vem o título dos dezoito discursos, como o autor lhes chama, que compõem a obra. Em fólio próprio, mas no verso, tem as licenças da edição de Coimbra.

      Na parte final da carta, Bartolomeu Filipe lamenta-se ter ido a Madrid, apesar dos seus sessenta anos, pedir autorização ao conselho real para publicar as suas obras em Salamanca ou Valladolid e lhe ter sido negada. Consegui-a em Portugal para esta obra, que, em Agosto de 1583, foi submetida a exame pelos catedráticos de prima de leis, cânones e teologia, da universidade de Coimbra.  

    Foi pena que até hoje, os que se debruçaram sobre este autor não tenham dado a merecida importância a todo o texto da carta nuncupatória, porque se o tivessem feito, penso, não teriam andado tanto à deriva no que respeita à biografia do autor. É que este escreve que, com sessenta anos, teve que ir a Madrid pedir autorização para publicar as suas obras. Ora isso só pode ter acontecido depois de 13 de Fevereiro de 1583, data em que o rei espanhol regressou à sua terra. E foi com toda a certeza nesse ano; pois em Agosto já estava a obra a ser examinada pelos catedráticos da Universidade de Coimbra. Certamente, com a expressão sessenta anos queria significar ser sexagenário, andava na casa dos sessenta anos. Porque, na mesma carta, lembra que compôs a enorme quantidade livros que enumera, durante 50 anos, desde 1536 até 1584, depois de ter lido durante 20 anos nas Universidades de Lisboa, Salamanca e Coimbra, tendo cessado a actividade docente há 30 anos. Em 1536, foi impressa em Salamanca, onde então se encontrava, a sua primeira obra , cuja escrita deverá ter sido iniciada em 1534. Obra que se encontra descrita por Francisco de  Leite Faria, sob o nº 365- Eruditum et Engeniosum  de Fictionibus  Opusculum ( In Estudos Bibliográficos sobre Damião de Góis e a sua Época, Lisboa, 1977,pág.422).

Quanto à sua passagem pela Universidade de Lisboa, não se encontram registos, mas encontram-se do pai, Mestre Filipe, doutor de medicina. No entanto, esse facto não impede de se conjecturar, face à sua informação, que deverá ter sido na Universidade de Lisboa que fez o bacharelato em Artes, indispensável para se matricular em Cânones, o que fez em Salamanca. O que deve ter ocorrido no ano de 1531. Pois que, em 28 de Agosto de 1534 obtém o bacharelato em direito canónico  ( Veríssimo Serrão, obr. cit. pág 284). Sendo certo que este grau académico só era concedido  ao fim de três anos de estudo, Alem disso, em carta datada de Salamanca, 28 de Setembro de 1532, Baltazar de Teive escreve a Rodrigo Sanches, respondendo à carta que lhe havia enviado de Lisboa, por intermédio de Bartolomeu Filipe,  a quem  se refere como sendo ”um adolescente, velho amigo meu”( Obr. cit.,  pág.429) . Ao tratar daquele modo o amigo, infere-se que eram companheiros em Salamanca mas também teriam sido em Lisboa. Doutra forma, não se compreenderia que o incluísse no rol dos seus  velhos amigos.

   Em 30 de Julho de 1537, torna-se também bacharel em Direito Civil ( obr. cit., pág. 284). Mas, no ano seguinte, já se encontra em Portugal e na Universidade de Coimbra. Pois , em 7 de Outubro de 1538, o bacharel Bartolomeu Filipe começou a ler( Mário Brandão, Actas dos Conselhos da Universidade de 1537 a 1557, vol. I, pág. 33). Em Outubro do ano seguinte, já nos aparece, não o bacharel, mas o doutor Bartolomeu Filipe, como lente de Cânones (  obr. cit. , pág. 59). Pois, D. João III, por alvará de 13 de Outubro de 1539, “ por confiar do saber e letras do doutor bertolameu felipe  ey por bem e me praz  que elle lea huma lição de canones de cadeira piquena”( Mário Brandão, Documentos de D. João III, vol. I, pág.215).

    Entretanto, no ano de 1539 publica a sua segunda obra, mas em Lisboa, a qual vem descrita por António Joaquim Anselmo sob o nº 1007 – Repetitio in Canone  Scindite corda vestra de Penitentia. Distinctio prima( obr. cit., pág. 294-5).

    Por alvará de 7 de Setembro de 1542, o rei ordena  que o doutor Bartolomeu Filipe leia por três anos uma cadeira de Cânones ( obr. cit., vol. II, pág.97).

    Por alvará de 16 de Setembro de 1547, D. João III manda o doutor Bartolomeu Filipe ler a cadeira de Decreto por tempo de três anos ( obr. cit., vol. III, pág. 95).

    Por alvará de 21 de Fevereiro de 1554, D. João III  manda que o doutor Bartolomeu Filipe continue a ler a cadeira de Decreto, “ enquanto não mandar o contrário” ( 0br. cit. Vol. IV, pág.215).

    No conselho de 31 de Julho de 1554, o doutor Bartolomeu Filipe é multado “ em huma dobra de trezentos e setenta reis, porque não acompanhou o Reitor a misa e pregação quando se ajunta a universidade em santa cruz” ( Actas dos Conselhos da Universidade, Vol. II, II Parte, pág.234). 

    Na carta nuncupatória da obra em apreço, o doutor Bartolomeu Filipe informa-nos que havia deixado o ensino há 30 anos, com referência a 1584, para se dedicar por inteiro à escrita dos seus livros, que pretendia publicar. A ser verdadeira aquela afirmação do autor, este cessou a docência em 1554, apesar do rei lhe ter ordenado que continuasse a ler” enquanto não mandasse o contrário”. Esta expressão régia deverá querer significar que, ao fim e ao cabo, o rei lhe concedia a titularidade da cadeira enquanto a pudesse ler. Daí Leitão Ferreira  nos dizer que até ao ano de 1589- um ano antes de falecer- “ se acham memórias suas nos livros da Universidade, e por  “Doutor insigníssimo o nomeiam alguns assentos”( Notícias Chronologicas da Universidade de Coimbra, Segunda parte, Vol. I, pág.178).

    Barbosa Machado escreve que Bartolomeu Filipe faleceu com 110 anos de idade ( Biblioteca Lusitana, Vol. I, pág.453). Tendo o catedrático coimbrão falecido em Coimbra, em 25 de Outubro de 1590, se, na verdade, tivesse andado neste mundo todos aqueles anos, teria nascido em 1480. E são estes os dados biográficos que a BNP nos fornece . No entanto, se tivermos presente os elementos por ele fornecidos na carta nuncupatória e o conteúdo da carta do seu amigo, acima referida, facilmente concluímos que Bartolomeu Filipe não nasceu em fins do século XV, mas na primeira vintena do século seguinte, muito provavelmente em 1513 ou 1514, levando em linha de conta, que também D. Jerónimo Osório foi para Salamanca, aos 13 anos, como ficou referido no volume II deste meu despretensioso trabalho ( pág. 109). E o célebre humanista Diogo de Teive foi estudar para Paris com a idade de 12 anos ( Mário Brandão, O processo na Inquisição de Mestre  Diogo de Teive, Coimbra,1943, pág.3). Com a mesma idade deve ter ido Bartolomeu Filipe para os Estudos Gerais de Lisboa, isto é, em 1526 ou 1527, não esquecendo que em 1531 estava em Salamanca a cursar Cânones. E aí encontrou certamente o futuro bispo do Algarve, embora por pouco tempo. Além disso, não nos podemos esquecer que seu pai era aí professor, tendo adquirido o grau de Doutor em Medicina em 22 de Junho de 1511 ( Auctarium Chartularii Universitatis Portugalensis, vol I, pág. 181). E, consultando a mesma obra, constatamos que em 1535 ainda participava nos actos universitários. Por isso, nada mais natural que o filho tivesse ido frequentar a escola, onde o pai também era docente.

    Na carta nuncupatória, o Doutor Bartolomeu Filipe, depois enumerar variadíssimas obras, escritas em latim, presume-se, refere muitas outras, redigidas em romance, todas prontas, naquele ano de 1584, para serem impressas. Ao falar em romance, estava, com toda a certeza, a aludir à língua castelhana, uma vez que foi nesse idioma que escreveu a que, então, estava a ser impressa em Coimbra. No entanto, todas deverão ter desaparecido, porque não se conhece o rasto de nenhuma.

    No Discurso Terceiro desta obra, Bartolomeu Filipe, muito embora entendesse que, por direito, era o rei de Espanha que deveria suceder no trono de Portugal, não o disse publicamente, porque, para além de ser velho, pobre e sem descendência, não queria que pensassem que esperava algum benefício. No entanto, depois do soberano ocupar o trono de Portugal, fê-lo num tratado que compôs sobre a “Sucessão do Reino de Portugal” que não foi impresso porque lhe não concederam licença para o fazer ( fól.10-11). O que vem contrariar a tese do grande Professor Veríssimo Serrão, quando afirma que Bartolomeu Filipe “ foi um dos mais zelosos adeptos da política de Cristóvão de Moura, prestando serviços, em 1580, à causa filipina (Portugueses no Estudo de Salamanca, pág.285). Se a asserção do ilustre professor tivesse fundamento, não se encontraria explicação para a recusa que recebeu em Madrid para a publicação dos livros, que tinha prontos para enviar para os prelos das universidades de Salamanca ou Valladolid, como acima se referiu. Penso que, porque não tornou pública a sua posição, quanto à causa da sucessão dinástica, antes da sua consumação, é que sentiu necessidade de dedicar a obra ao Cardeal Alberto, representante do rei espanhol em Portugal.

    Como acima se deixou dito, Bartolomeu Filipe foi intermediário no relacionamento epistolar entre Baltazar de Teive e Rodrigo Sanches, dois conhecidos humanistas das suas relações, bem como o irmão deste, Pedro Sanches. Pois, Bartolomeu Filipe também era um humanista. Basta ler o elenco de autores, gregos e romanos, que cita na sua obra, para facilmente chegar a essa conclusão. Mas, Bartolomeu Filipe também se carteava com outros famosos humanistas portugueses, seus contemporâneos, como Jerónimo Cardoso. Os quais, por sua vez, relacionavam-se com o famoso escol literário feminino, em que se integrava a Infanta D. Maria, as irmãs Sigea, Luisa(2) e Ângela, Paula Vicente, filha de Gil Vicente, a conimbricense Joana Vaz e, mais tarde, Públia Hortênsia de Castro, de Vila Viçosa.

      Uma carta, datada do quarto dia das calendas de Março de 1539, dirigida a Jerónimo Cardoso, Bartolomeu Filipe termina-a com estas palavras : “ Ceterum , opto ut quod facis  perpetuo facias, Lusitanam iuuentutem  doctrina , moribus, pietate instituas, rem non minori tibi ac patriae ornamento futuram  - Quanto ao mais, peço-te que faças sempre o que já fazes: que formes a juventude portuguesa no saber, nos costumes, na virtude, trabalho que será para ti uma glória não menor do que para a pátria” ( Jerónimo Cardoso, Obra Literária, Tomo I, pág.159).   

    Não tenho a menor dúvida de que, se as cerca de cem obras que afirma ter escrito, houvessem sido impressas, Bartolomeu Filipe seria bem mais conhecido, até como humanista, que realmente era.  

 

 1)   Há quem sustente que os nomes do impressor e do local de impressão sejam falsos. O livro terá sido impresso em Londres por John Wolfe e não em Turim por Vincenzo del Pernetto, seu pseudónimo.

 

 

(2) - Luísa Sigea, em 1546, escreve ao papa Paulo III uma carta em latim. grego, hebraico, caldeu e árabe, mas só é conhecida a versão latina( Léon Bourdon & Odette Sauvage in Bulletin des Etudes Portugaises Tome 31,1970,pág.38). Frey Fernando da Soledade referir-se-á às duas irmãs nestes termos : “ Tem criado  sugeytos ilustres  em letras, entre os quaes  por sua singularidade se eterniza na fama o nome de Luisa Sigea, mulher preclara em diversas erudições , & faculdades. Esta escreveu huma carta  ao Summo Pontifice Paulo III nas línguas  Latina,Grega, Hebrayca, Caldaica, & Arabiga: à qual respondeu o Vigario de Christo com um Breve cheyo de aplausos, & favores espirituais… Era Luisa Sigea  Donzella da Infanta D. Maria filha delRey D. Manoel, em cujo serviço também  assistia outra irmã sua, chamada Angela Sigea, igual no engenho, mas superior na Musica, em que se constituhio eminente” ( Historia Serafica Chronologica da Ordem de S. Francisco na Provincia de Portugal, Tomo IV, Manoel & Joseph Lopes Ferreyra,1709, pág. 419). Às irmãs Sigea e à infanta D. Maria refere-se o flamengo João Vaseu ( Jean Was) – de quem me ocuparei mais adiante – na sua célebre obra, impressa em Salamanca em 1552, “  Chronici Rerum Memorabilium  Hispaniae Tomus Prior,no fólio 19. E a todas, Carolina Michaëlis de Vasconcellos em “ A Infanta D. Maria de Portugal e as Suas Damas, Porto, 1902”.