sexta-feira, 5 de junho de 2015

OS LUSÍADAS


OS  LUSIADAS  DE  LUIS  DE  CAMÕES.Agora de nouo impresso, com algumas Annotacões , de diversos Autores. Com licença do Supremo Conselho da Santa e Geral Inquisição, por Manoel de Lyra. Em Lisboa Anno de 1584.

     É um exemplar da 2ª edição de  OS  LUSÍADAS. Hoje é ponto assente que a 1ª edição é a de 1572, por António Gonçalves, com a gravura em que a cabeça do pelicano está voltada para a esquerda do leitor e as estrias das duas colunas se apresentam no sentindo descendente da esquerda para a direita. A do pelicano, com a cabeça virada para a direita do leitor e com as estrias das duas colunas no sentindo descendente da direita para a esquerda, é posterior à de 1584 e saiu como reacção a esta, grandemente mutilada pela inquisição, como adiante se demonstrará.

    Ao centro, a portada ostenta a marca do impressor: Orfeu, coroado de louro, tocando violino para um veado e para um leão e com as palavras non vi, sed ingenio et arte, dentro de uma linha oval. Seguem-se as licenças e a taboada, e, a esta, uma nova gravura, mas agora com linha oval emoldurada, tendo na parte superior Diana recostada num veado e por baixo a legenda MUSIS  SACRUM; e na parte inferior as letras M  L .

  Esta edição também é conhecida pela edição dos piscos. O que se deve ao comentário do fólio 76, onde, comentando o verso E a piscosa Cizimbra…  , se escreve: Chama piscosa, porque em certo tempo se ajunta ali grande cantidade de piscos, pera se passarem a Affrica..O étimo latino de piscosa é piscosus-a-um, que significa abundante em peixe. Cesimbra já nesse tempo era terra de pescadores, e não ponto de encontro do lindo pássaro, chamado pisco, como pretendia o ignorante comentador de OS  LUSÍADAS.

  A imortal obra do nosso incomparável poeta foi barbaramente truncada pela inquisição nesta edição.Sem, para já, abordarmos as ínumeras alterações do texto, não podemos esquecer o grande número de estrofes ou estâncias que foram pura e simplesmente suprimidas e, no Canto II, a estância, que se segue, com o número 33, não existe na edição prínceps nem em nenhuma outra, por mim consultada:

 

                                        Oraua o ilustre Gama desta sorte.

                                        Quando huma voz ouuio que do alto vinha

                                        Dizendolhe,Não temas ver a morte

                                        Tão propínqua a ti, e tão vezinha,

                                        Animate, e esforça varão forte,

                                        Que tal empresa, a talvarão conuinha,  

                                        Ouuindo isto o Gama a tento estaua,

                                         E a voz que bem se ouuia,assi soaua.

      

 

No mesmo canto faltam as estrofes 33 – Ouuiolhe estas palavras piadosas -  a 43 – E co seu apertando o rosto amado. Por isso, nesta edição, o Canto II tem apenas 103 estrofes enquanto a princeps tem 113. Faltam 11 estrofes a este canto.

 

 No Canto  III falta a última estrofe, a 143 – Quem vio hum olhar seguro, hum gesto brando.

 

 No Canto V faltam as estrofes 19 – Eu o vi certamente e não presumo – , 20 – Hiase pouco e pouco acrecentando – e 55 – Ia nescio, ja da guerra desistindo.

 

No Canto VI falta a estrofe 59 – Mas aquella a quem fora em sorte dado .

 

 No Canto IX faltam as estrofes 71 – De huma os cabelos de ouro o vento leva-, 72 – Outros por outra parte vão topar –,73 – Outra como acudindo mais depressa –, 78 –Nam canses, que me cansas: e se queres - e 83 – O que famintos beijos na floresta.

 

 

 

 No Canto X faltam as estrofes 25 – Mas tu de quem ficou tão mal pagado -, 83 – E tambem porque a sancta prouidencia,-, 84 – Quer logo aqui a pintura, que varia – e 119-E vós outros, que os nomes usurpaes .

 

     Para além da supressão das mencionadas 25 estrofes ou estâncias e da inclusão da espúria 33 do canto II, há incontáveis alterações do texto, como já se deixou dito. No entanto, só me referirei às mais significativas, tendo em vista o que pretendo demonstrar: que a edição do pelicano com a cabeça voltada para a direita do leitor é posterior à dos “Piscos”, sendo esta, por consequência, a verdadeira 2º edição da imortal obra.

 

  No Canto II, na estrofe ou estância 44 da edição prínceps, lemos:

 

                               Fermosa filha minha não temais

                               Perigo algum, nos vossos Lusitanos,

                               Nem que ninguem comigo possa mais,

                               Que estes chorosos olhos soberanos

                               Que eu vos prometo filha que vejais

                               Esqueceremse Gregos e Romanos,

                               Pelos ilustres feitos que esta gente,

                               Há de fazer nas partes do Oriente.

 

Enquanto, na dos “ Piscos”, fol.40 v. estrofe 34, escreveu-se :

                           

                                Famosos Portugueses não temais

                                Perigo algum jamais em Lusitanos

                                Nem que nenhum que eles possa mais

                                Em quantas gerações ouuer de humanos

                                Que vos fico amigos que vejais

                                Esqueceremse Gregos e Romanos

                                Pellos illustres feitos que essa gente

                                Há de fazer nas partes de Oriente.

 

 

   No Canto III, na estrofe 34, Camões escreveu : Eis se ajunta o soberbo castelhano,. Na dos “ Piscos” vem : Eis se ajunta o valente castelhano.

 

   No Canto IV, na estrofe 24, o Poeta escreveu: Dom Nuno Aluares digo, verdadeiro/ Açoute de soberbos Castelhanos. Na dos “Piscos” saiu:  Dom Nuno Aluares digo, verdadeiro/ Exemplo de valentes Castelhanos.

 

    Na estrofe 40 do mesmo canto, nos versos 7 e 8, escreveu o Poeta: Os Pereiras também arrenegados/ Morrem , arrenegando o Ceo e os fados.  Na dos “Piscos” escreveu-se: Os Pereiras, que também são rebelados,/ Finalmente são aqui desbaratados.

 

 

 

 

 

   Perante tais monstruosidades filocastelhanas, e a barbárie inquisitorial, a reacção não se fez esperar.O fervor patriótico dos que viram gorados os seus intentos, ao serem obrigados a imprimir e publicar um texto completamente desfigurado, levou-os -  Manuel de Lira e Frei Bartolomeu Ferreira -  a fazer sair clandestinamente dos prelos a edição prínceps, apenas com a gravura da portada invertida e algumas alterações. E passou de tal modo despercebida, que só meio século mais tarde, é que Faria e Sousa se apercebeu que eram diferentes os dois exemplares que possuía, como sendo ambos da edição prínceps.( LUSIADAS DE LUIS DE CAMOENS, Madrid,Iuan Sanchez, 1639, Tomo IV,col.31, comentário à estrofe XXI do Canto IX).Pensou que um deles seria de uma segunda edição;mas não notou as diferenças da gravura; essas só no século XIX é que foram descobertas.

    Como acima se deixou dito, foi em 1586 que a gravura, tal como se apresenta na edição prínceps, foi utilizada pela última vez e por António Ribeiro. Nesse mesmo ano, este impressor imprimiu juntamente com Manuel de Lira o Catechismus Christianae Fidei. Ora,estando aquela gravura em poder do seu colega e parceiro, nada mais natural que colaborasse com Manuel de Lira na reposição da verdade histórica, cedendo-lhe a famosa gravura. Por isso, a falsa primeira edição- a do pelicano com a cabeça virada para a direita do leitor -  foi impressa depois de 1584 – ano da edição dos piscos -  e também depois da impressão da mencionada obra do grande impressor António Ribeiro-1586.

     Faria e Sousa, na edição acima referida e que o saudoso professor Pina Martins considerava “ a mais valiosa ed. de todos os tempos da nossa epopeia nacional ( OS LUSIADAS, 1572-1972, CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO BIBLIOGRÁFICA… BIBLIOTECA NACIONAL DE LISBOA, 1972, pág.91), escreve “ i en Portugal , adonde rara vez se imprime un libro dos vezes, se tiene impresso este tantas , que no las sè todas. Esta que fuè del Poeta , otra que dizen se hizo por orden de los Padres Jesuitas, muy viciada, porque le trocaran estancias por outras, i alteraron en algunas” ( obr. cit,col.546, comentário à estrofe CXXVII do Canto X ). 

   Não sabemos, com segurança, se foram os jesuitas os autores das atrocidades cometidas na nossa epopeia nacional, com eventuais intuitos pedagógicos. Sabemos, porém, que da mesa censória fazia parte um jesuíta, o padre Jorge Serrão ( 1527- 1590), mestre em Artes e doutor em Teologia, que  foi cancelário, reitor e professor de Teologia na Universidade de Évora ( Pe. João Pereira Gomes, SJ., Jesuítas, Ciências & Cultura no Portugal Moderno, Esfera do Caos, pág.275). O que não podemos ignorar é que, em ambas as edições, a pessoa que dá parecer para a mesa censória é a mesma: FREY  BERTHOLAMEU FERREIRA.

  E como são diferentes os dois pareceres ! Enquanto na princeps, o frade dominicano dá o seu aplauso à obra, enaltecendo-a, assim como ao seu autor, na dos “Piscos”, percebe-se perfeitamente que está, como hoje se diria, a fazer um frete; pois, se o não fizesse, estaria, com toda a certeza, a contas com o tribunal inquisitorial. É a este homem que devemos a publicação da nossa epopeia nacional, tal como o poeta a mandou para o impressor. É por isso que Pinharanda Gomes escreveu:…” entre eles sobressaindo o nome do dominicano Bartolomeu Ferreira cuja obra como qualificador e censor bem merecia ser compilada a partir dos livros acerca dos quais deu parecer. As principais obras portuguesas editadas no seu tempo, como OS LUSÍADAS, de

Camões, beneficiaram da sua leitura e das suas recomendações. Não foi o inquisidor literário que alguns quadrantes ideológicos propagam, bastando considerar que argumentou a favor da impressão do canto IX de Os Lusiadas, contra o que seria geral opinião acerca das vantagens ou desvantagens de dar corpo impresso a esse Canto” (Os Conimbricenses, Guimarães Editores,pág.107-8).
    Numa análise perfunctória das três primeiras edições so século XVII – 1609, por Pedro Crasbeeck, 1612, por Vicente Aluarez e 1613, por Pedro Crasbeeck- dedicadas a D. Rodrigo da Cunha, todas foram impressas, tendo por modelo a edição prínceps. Contudo, o Morgado de Matteus, na sua tão famosa como valiosa edição,de Paris, de 1817, seguiu a falsa primeira edição, por se ter convencido que era essa a edição prínceps e ambas de 1572.  É o que resulta da leitura da sua Advertência e da confrontação do texto da sua edição com a prínceps.

     Não posso silenciar que o que se deixa escrito, apesar do doutamente expendido no ”Dicionário de Luis de Camões”.

     Embora a obra do imortal CAMÕES tenha lugar captivo na minha mesinha  -de - cabeceira, e bastantes dos seus sonetos estejam permanentemente na minha memória, eu não me sinto à altura para falar de tão enorme figura.Termino, transcrevendo o que o seu amigo Diogo do Couto nos relata na sua OITAVA  DÉCADA :  “ Em Moçambique  achamos aquelle Principe dos Poetas de seu tempo, meu matalote, e amigo Luiz de Camoens, tão pobre que comia de amigos, e pera se embarcar pera o Reino lhe ajuntamos os amigos toda a roupa que houve mister, e não faltou que lhe desse de comer, e aquelle inverno que esteve em Moçambique, acabou de aperfeiçoar as suas Luziadas pera as imprimir, e foy escrevendo  muito em hum livro que hia fazendo, que intitulava Parnaso de Luiz de Camoens, livro de muita erudição, doutrina e Filosofia, o qual lhe furtaraõ, e nunca pude saber no Reino delle, por muito que o inquiri, e foy furto notável, e em Portugal morreo este excelente Poeta em pura pobreza”. ( Tomo III, Lisboa Ocidental, Officina de Domingos Gonsalves,impressor dos Monges Descalços desta Corte, 1736, pág.404)