OS LUSIADAS
DE LUIS DE
CAMÕES.Agora de nouo impresso, com algumas Annotacões , de diversos
Autores. Com licença do Supremo Conselho da Santa e Geral Inquisição, por
Manoel de Lyra. Em Lisboa Anno de 1584.
É um
exemplar da 2ª edição de OS LUSÍADAS. Hoje é ponto assente que a 1ª
edição é a de 1572, por António Gonçalves, com a gravura em que a cabeça do
pelicano está voltada para a esquerda do leitor e as estrias das duas colunas
se apresentam no sentindo descendente da esquerda para a direita. A do pelicano,
com a cabeça virada para a direita do leitor e com as estrias das duas colunas
no sentindo descendente da direita para a esquerda, é posterior à de 1584 e
saiu como reacção a esta, grandemente mutilada pela inquisição, como adiante se
demonstrará.
Ao centro, a portada ostenta a marca do
impressor: Orfeu, coroado de louro, tocando violino para um veado e para um
leão e com as palavras non vi, sed
ingenio et arte, dentro de uma linha oval. Seguem-se as licenças e a
taboada, e, a esta, uma nova gravura, mas agora com linha oval emoldurada,
tendo na parte superior Diana recostada num veado e por baixo a legenda
MUSIS SACRUM; e na parte inferior as
letras M
L .
Esta edição também é conhecida pela edição
dos piscos. O que se deve ao
comentário do fólio 76, onde, comentando o verso E a piscosa Cizimbra… , se
escreve: Chama piscosa, porque em certo
tempo se ajunta ali grande cantidade de piscos, pera se passarem a Affrica..O
étimo latino de piscosa é piscosus-a-um, que significa abundante em peixe.
Cesimbra já nesse tempo era terra de pescadores, e não ponto de encontro do
lindo pássaro, chamado pisco, como pretendia o ignorante comentador de OS LUSÍADAS.
A imortal obra do nosso incomparável poeta
foi barbaramente truncada pela inquisição nesta edição.Sem, para já, abordarmos
as ínumeras alterações do texto, não podemos esquecer o grande número de
estrofes ou estâncias que foram pura e simplesmente suprimidas e, no Canto II,
a estância, que se segue, com o número 33, não existe na edição prínceps nem em
nenhuma outra, por mim consultada:
Oraua o
ilustre Gama desta sorte.
Quando
huma voz ouuio que do alto vinha
Dizendolhe,Não temas ver a
morte
Tão propínqua a
ti, e tão vezinha,
Animate, e esforça varão forte,
Que tal empresa,
a talvarão conuinha,
Ouuindo isto o Gama a tento estaua,
E a voz que bem
se ouuia,assi soaua.
No mesmo
canto faltam as estrofes 33 – Ouuiolhe estas palavras piadosas - a 43 – E co seu apertando o rosto amado. Por
isso, nesta edição, o Canto II tem apenas 103 estrofes enquanto a princeps tem
113. Faltam 11 estrofes a este canto.
No Canto
III falta a última estrofe, a 143 – Quem vio hum olhar seguro, hum gesto
brando.
No Canto V faltam as estrofes 19 – Eu o vi
certamente e não presumo – , 20 – Hiase pouco e pouco acrecentando – e 55 – Ia
nescio, ja da guerra desistindo.
No Canto
VI falta a estrofe 59 – Mas aquella a quem fora em sorte dado .
No Canto IX faltam as estrofes 71 – De huma os
cabelos de ouro o vento leva-, 72 – Outros por outra parte vão topar –,73 –
Outra como acudindo mais depressa –, 78 –Nam canses, que me cansas: e se queres
- e 83 – O que famintos beijos na floresta.
No Canto X faltam as estrofes 25 – Mas tu de
quem ficou tão mal pagado -, 83 – E tambem porque a sancta prouidencia,-, 84 –
Quer logo aqui a pintura, que varia – e 119-E vós outros, que os nomes usurpaes
.
Para além da supressão das mencionadas 25
estrofes ou estâncias e da inclusão da espúria 33 do canto II, há incontáveis
alterações do texto, como já se deixou dito. No entanto, só me referirei às
mais significativas, tendo em vista o que pretendo demonstrar: que a edição do
pelicano com a cabeça voltada para a direita do leitor é posterior à dos
“Piscos”, sendo esta, por consequência, a verdadeira 2º edição da imortal obra.
No Canto II, na estrofe ou estância 44 da
edição prínceps, lemos:
Fermosa filha
minha não temais
Perigo algum,
nos vossos Lusitanos,
Nem que ninguem comigo possa mais,
Que estes
chorosos olhos soberanos
Que eu vos
prometo filha que vejais
Esqueceremse
Gregos e Romanos,
Pelos ilustres
feitos que esta gente,
Há de fazer nas
partes do Oriente.
Enquanto,
na dos “ Piscos”, fol.40 v. estrofe 34, escreveu-se :
Famosos
Portugueses não temais
Perigo algum
jamais em Lusitanos
Nem que nenhum
que eles possa mais
Em quantas
gerações ouuer de humanos
Que vos fico
amigos que vejais
Esqueceremse
Gregos e Romanos
Pellos illustres feitos que essa gente
Há de fazer nas
partes de Oriente.
No Canto III, na estrofe 34, Camões escreveu
: Eis se ajunta o soberbo castelhano,. Na
dos “ Piscos” vem : Eis se ajunta o valente
castelhano.
No Canto IV, na estrofe 24, o Poeta
escreveu: Dom Nuno Aluares digo, verdadeiro/ Açoute de soberbos
Castelhanos. Na dos “Piscos” saiu:
Dom Nuno Aluares digo, verdadeiro/ Exemplo
de valentes Castelhanos.
Na estrofe 40 do mesmo canto, nos versos 7
e 8, escreveu o Poeta: Os Pereiras
também arrenegados/ Morrem , arrenegando o Ceo e os fados. Na dos “Piscos” escreveu-se: Os Pereiras, que também são rebelados,/ Finalmente são
aqui desbaratados.
Perante tais monstruosidades filocastelhanas,
e a barbárie inquisitorial, a reacção não se fez esperar.O fervor patriótico
dos que viram gorados os seus intentos, ao serem obrigados a imprimir e
publicar um texto completamente desfigurado, levou-os - Manuel de Lira e Frei Bartolomeu Ferreira - a fazer sair clandestinamente dos prelos a
edição prínceps, apenas com a
gravura da portada invertida e algumas alterações. E passou de tal modo
despercebida, que só meio século mais tarde, é que Faria e Sousa se apercebeu que
eram diferentes os dois exemplares que possuía, como sendo ambos da edição
prínceps.( LUSIADAS DE LUIS DE CAMOENS, Madrid,Iuan Sanchez, 1639, Tomo
IV,col.31, comentário à estrofe XXI do Canto IX).Pensou que um deles seria de
uma segunda edição;mas não notou as diferenças da gravura; essas só no século
XIX é que foram descobertas.
Como acima se deixou dito, foi em 1586 que
a gravura, tal como se apresenta na edição prínceps, foi utilizada pela última
vez e por António Ribeiro. Nesse mesmo ano, este impressor imprimiu juntamente
com Manuel de Lira o Catechismus
Christianae Fidei. Ora,estando aquela gravura em poder do seu colega e
parceiro, nada mais natural que colaborasse com Manuel de Lira na reposição da
verdade histórica, cedendo-lhe a famosa gravura. Por isso, a falsa primeira
edição- a do pelicano com a cabeça virada para a direita do leitor - foi impressa depois de 1584 – ano da edição
dos piscos - e também depois da
impressão da mencionada obra do grande impressor António Ribeiro-1586.
Faria e Sousa, na edição acima referida e
que o saudoso professor Pina Martins considerava “ a mais valiosa ed. de todos
os tempos da nossa epopeia nacional ( OS LUSIADAS, 1572-1972, CATÁLOGO DA
EXPOSIÇÃO BIBLIOGRÁFICA… BIBLIOTECA NACIONAL DE LISBOA, 1972, pág.91), escreve
“ i en Portugal , adonde rara vez se imprime un libro dos vezes, se tiene
impresso este tantas , que no las sè todas. Esta que fuè del Poeta , otra que
dizen se hizo por orden de los Padres Jesuitas, muy viciada, porque le trocaran
estancias por outras, i alteraron en algunas” ( obr. cit,col.546, comentário à
estrofe CXXVII do Canto X ).
Não sabemos, com segurança, se foram os
jesuitas os autores das atrocidades cometidas na nossa epopeia nacional, com
eventuais intuitos pedagógicos. Sabemos, porém, que da mesa censória fazia
parte um jesuíta, o padre Jorge Serrão ( 1527- 1590), mestre em Artes e doutor
em Teologia, que foi cancelário, reitor
e professor de Teologia na Universidade de Évora ( Pe. João Pereira Gomes, SJ.,
Jesuítas, Ciências & Cultura no Portugal Moderno, Esfera do Caos, pág.275).
O que não podemos ignorar é que, em ambas as edições, a pessoa que dá parecer
para a mesa censória é a mesma: FREY
BERTHOLAMEU FERREIRA.
E como são diferentes os dois pareceres !
Enquanto na princeps, o frade
dominicano dá o seu aplauso à obra, enaltecendo-a, assim como ao seu autor, na
dos “Piscos”, percebe-se perfeitamente que está, como hoje se diria, a fazer um
frete; pois, se o não fizesse, estaria, com toda a certeza, a contas com o tribunal
inquisitorial. É a este homem que devemos a publicação da nossa epopeia
nacional, tal como o poeta a mandou para o impressor. É por isso que Pinharanda
Gomes escreveu:…” entre eles sobressaindo o nome do dominicano Bartolomeu
Ferreira cuja obra como qualificador e censor bem merecia ser compilada a
partir dos livros acerca dos quais deu parecer. As principais obras portuguesas
editadas no seu tempo, como OS LUSÍADAS, de
Camões, beneficiaram da sua leitura e das suas recomendações. Não foi o inquisidor literário que alguns quadrantes ideológicos propagam, bastando considerar que argumentou a favor da impressão do canto IX de Os Lusiadas, contra o que seria geral opinião acerca das vantagens ou desvantagens de dar corpo impresso a esse Canto” (Os Conimbricenses, Guimarães Editores,pág.107-8).
Numa análise perfunctória das três
primeiras edições so século XVII – 1609, por Pedro Crasbeeck, 1612, por Vicente
Aluarez e 1613, por Pedro Crasbeeck- dedicadas a D. Rodrigo da Cunha, todas
foram impressas, tendo por modelo a edição prínceps. Contudo, o Morgado de
Matteus, na sua tão famosa como valiosa edição,de Paris, de 1817, seguiu a
falsa primeira edição, por se ter convencido que era essa a edição prínceps e
ambas de 1572. É o que resulta da
leitura da sua Advertência e da confrontação do texto da sua edição com a
prínceps.
Não posso silenciar que o que se deixa
escrito, apesar do doutamente expendido no ”Dicionário de Luis de Camões”.
Embora a obra do imortal CAMÕES tenha
lugar captivo na minha mesinha -de -
cabeceira, e bastantes dos seus sonetos estejam permanentemente na minha
memória, eu não me sinto à altura para falar de tão enorme figura.Termino,
transcrevendo o que o seu amigo Diogo do Couto nos relata na sua OITAVA DÉCADA :
“ Em Moçambique achamos aquelle
Principe dos Poetas de seu tempo, meu matalote, e amigo Luiz de Camoens, tão
pobre que comia de amigos, e pera se embarcar pera o Reino lhe ajuntamos os
amigos toda a roupa que houve mister, e não faltou que lhe desse de comer, e
aquelle inverno que esteve em Moçambique, acabou
de aperfeiçoar as suas Luziadas pera as imprimir, e foy escrevendo muito em hum livro que hia fazendo, que
intitulava Parnaso de Luiz de Camoens, livro de muita erudição, doutrina e
Filosofia, o qual lhe furtaraõ, e nunca pude saber no Reino delle, por muito
que o inquiri, e foy furto notável, e em Portugal morreo este excelente Poeta
em pura pobreza”. ( Tomo III, Lisboa Ocidental, Officina de Domingos
Gonsalves,impressor dos Monges Descalços desta Corte, 1736, pág.404)
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