sábado, 30 de janeiro de 2021
LARGO DOUTOR ANTÓNIO DE SOUSA DE MACEDO
< LARGO DO DOUTOR ANTÓNIO DE SOUSA DE MACEDO
Na toponímia da cidade de Lisboa, há um largo com o nome Largo do Doutor António de Sousa de Macedo. Embora já por lá tenha passado, nas minhas andanças pela capital, nunca reparei no nome desse largo. Não fora um trabalho, vindo a lume na “E Revista do Expresso”, de 8 de Janeiro de 2021,e eu continuaria a desconhecer o nome daquele largo. O título do trabalho é O FADO DO DOUTOR ANTÓNIO DE SOUSA DE MACEDO- O médico erudito que escreveu um poema mitológico intitulado “ Ulissipo” não passava de um ilustre desconhecido. Até que Alberto Manguel decidiu morar no largo a que ele deu o nome em Lisboa” .
O que, no mencionado artigo, me despertou imediatamente a atenção foi dizer-se que António de Sousa de Macedo era médico e desconhecido. Desconhecido do autor do texto não me surpreende, porque se trata de uma pessoa que não é portuguesa e, por consequência, não tem que ter conhecimentos da cultura portuguesa; mas já fico surpreendido que outros não saibam quem, verdadeiramente, foi o Doutor António de Sousa de Macedo!
O mencionado artigo, para mim, foi-me muito útil. Eu explico: A primeira coisa que fiz, ao ler o título, foi ir à estante da minha biblioteca buscar aquela obra, cujo verdadeiro título é ULYSSIPPO POEMA HEROICO. Impresso em Lisboa por Antonio Alvarez, em 1640. Depois, foi ir ao computador, onde se encontram registados todos os livros que possuo, a fim ver quais as obras que tinha, das muitas por ele escritas. Constato, então, que o poema não fazia parte das registadas em seu nome. O que me deixou deveras surpreendido. Depois de muito trabalho, lá consegui localizá-la, atribuída a um Sousa Machado. Embora em último lugar, como a ordem alfabética impõe, já integra a lista das obras do Doutor António de Sousa de Macedo, existentes na minha biblioteca. Entre elas, conta-se DECISIONES SUPREMI SENATUS IUSTITIAE LUSITANIAE, ET SUPREMI CONSILII FISCI, ac patrimonii Regis. Ulissippone, Henrique Valente de Oliveira, 1660. Na verdade, o Doutor António de Sousa de Macedo, não foi médico. Depois de ter feito os estudos preparatórios no Colégio de Santo Antão, Macedo ingressou na Universidade de Coimbra, onde cursou Direito. Acabado o curso, foi, posteriormente, nomeado desembargador da Casa da Suplicação.
Se alguma influência, as ideias ou doutrina do Doctor Eximius exerceram sobre Macedo, só através das suas obras, porque, quando o ilustre professor coimbrão, Francisco Suárez, faleceu – 25 de Setembro de 1617,às sete horas, na casa dos jesuítas em S. Roque- António de Sousa de Macedo tinha apenas 10 anos de idade, uma vez que nasceu, a 15 de Dezembro de 1606, na cidade do Porto.
Depois da Restauração, acompanha, como seu secretário, um dos QUARENTAS CONJURADOS de 1640, D. Antão de Almada, que vai para Londres, com a difícil, mas importantíssima missão de convencer o rei de Inglaterra a reconhecer D. João IV como rei de Portugal independente.
Poucos dias antes do glorioso 1º de Dezembro, havia saído dos prelos de António Álvares aquele seu poema, em 14 cantos, pois as licenças estão datadas de 30 e 31 de Outubro. Mas, já em 1631, havia publicado, em Lisboa, FLORES DE ESPAÑA EXCELENCIAS DE PORTUGAL, obra redigida em castelhano; o que era frequente naquela altura.
Em Londres desde 1641, publica nessa cidade, em 1642, a sua obra JUAN CARAMUEL LOBKOVITZ, também em castelhano, que dedica a Don Antão d’Almada. Nela refuta aquele monge cisterciense, que, em 1639, havia publicado, em Antuérpia, o seu PHILIPPUS PRUDENS, onde defende a legitimidade do rei de Espanha à coroa portuguesa. Nessa obra aparecem, em gravura de página inteira, todos os reis de Portugal e os três Filipes.
No ano seguinte, publica, também naquela cidade, GENEALOGIA REGUM LUSITANIAE, que dedica ao príncipe herdeiro, D. Teodósio, servindo-se da língua latina.
Em 1645, faz sair dos prelos de Londres a sua famosa obra LUISTANIA LIBERATA, onde, ao longo das 794 páginas de um in-fólio, faz a defesa histórico-jurídica do direito de D. João IV à coroa portuguesa. A obra vem adornada de várias gravuras de página inteira, aparecendo a primeira no anterrosto, onde ostenta a efígie de D. João IV. O texto da obra é precedido de uma maravilhosa gravura, representando a LUSITANIA, sentada sobre o globo, tendo, na mão direita, o ceptro e, na esquerda, a bandeira nacional. Outra gravura interessante, de página inteira, como todas, é a alusiva ao milagre que, segundo a lenda, precedeu a batalha de Ourique, isto é, o aparecimento de Jesus Cristo a D. Afonso Henriques, prometendo-lhe que venceria os muçulmanos. Também é de salientar a gravura que mostra D. João IV sentado no trono, ladeado por duas figuras, representando a Justiça, uma, e a outra a Paz, as quais suspendem sobre a cabeça do monarca a coroa real. Para além de várias outras, também deve ser referida a que representa o rei a cavalo, à frente do exército, combatendo os castelhanos. A obra está recheada de citações histórico-jurídicas, não se esquecendo o autor de, logo no início do primeiro proémio, citar Camões, a quem chama Homero Lusitano ou Virgílio Cristão ( Lusitanus Homerus sive Christianus Virgilius)
Em 1651, ano em que vai para a Holanda como embaixador de Portugal, publica em Haia do Conde, na oficina do inglês Samuel Broun, a sua obra HARMONIA POLÍTICA, escrita em bom português, que dedica ao príncipe herdeiro D. Teodósio, que morrerá dois anos depois. Na carta nuncupatória, escreve: “ Não escrevo só por liçam, ou só por experiencia: mas juntamente pello que li e pello que experimentei; nas embaxadas que tive a meu cargo vi e pratiquei os negocios mais graves que em Europa se offereceram nestes onze annos depois da Restituiçam de sua Magestade a sua Coroa; annos mais notáveis que muitos seculos”. Nesta obra, o doutor António de Sousa de Macedo disserta sobre as virtudes ou qualidades, que devem ornar um príncipe herdeiro do trono, socorrendo-se de exemplos de anteriores reis de Portugal.
Em 1676, publica, em Lisboa, EVA e AVE, ou MARIA TRIUNFANTE e, em 1682, ano da sua morte, faz sair dos prelos de Miguel Deslandes, DOMINIO SOBRE A FORTUNA E TRIBUNAL DA RAZAÕ, obra que escreveu para os seus netos, como o próprio autor fez questão de consignar: “ O Autor a seus netos para quem escreueo” . Estas duas obras foram publicadas, num só volume, por várias vezes, no século XVIII. Muitas outras obras foram escritas por António de Sousa de Macedo. Limitei-me a mencionar as existentes na minha biblioteca.
Respigando a revista O PANORAMA, deparei-me com este texto : “ começando no celebre Antonio de Sousa de Macedo, tão conhecido por consumado politico como por grande jurisconsulto e literato, de quem impressas correm muitas e importantes obras.
“Todos sabem que este douto varão foi ministro de Portugal em Inglaterra, no tempo d’elrei D. joão IV e durante a revolução que levou ao cadafalso o infeliz Carlos 1º; e que foi secretario d’estado do senhor D. Afonso VI; mas o que muitas pessoas ignoram é que seu filho, Luis Gonçalo de Sousa de Macedo, 1º barão da Ilha Grande, de quem seu pai era donatario, foi creado 1º barão de Molingaria, por mercê especial de Carlos 2º d’Inglaterra, para elle e para todos os seus legítimos descendentes, herdeiros da sua casa, perpetuamente, por carta passada em 28 de Junho de 1661, cujo original vimos escripto em pergaminho, na língua latina, com selo real pendente; e isto em contemplação e reconhecimento aos grandes serviços que praticou, e arriscados perigos de vida a que se expos o dito seu pae, Antonio de Sousa de Macedo, para sustentar os direitos da corôa britânica, e para defender o desventurado Carlos 1º, junto a quem estava acreditado como ministro de Portugal durante a revolução ( Ano de 1840, Volume Quarto, pág.326-7).
Já no século XX, Fidelino de Figueiredo escreverá: “ Macedo foi um dos mais úteis obreiros da consolidação do trono de D. João IV, como diplomata, como homem de govêrno e como homem de pena”( História da Literatura de Portugal, Nobel, Coimbra, pág.251). Na verdade, o Doutor António de Sousa de Macedo foi um prolífico escritor, mas, sobretudo, um estrénuo defensor dos direitos de D. João IV ao trono de Portugal e da independência de Portugal
quarta-feira, 20 de março de 2019
FRANCISCO SÁ DE MIRANDA
FRANCISCO DE SÁ DE MIRANDA
55- FRANCISCO DE SÁ DE MIRANDA, nasceu em Coimbra, no ano de 1486 ou 1487, filho do cónego da Sé de Coimbra, Gonçalo Mendes de Sá e de Inês de Melo, e neto paterno de João Gonçalves de Miranda e de sua mulher Filipa de Sá, que viveram em S. Salvador do Campo- Barcelos- e em Coimbra, onde deve ter estudado nas escolas da Igreja de Santa Cruz, podendo ter transitado, depois, para os Estudos Gerais de Lisboa – Universidade -, onde pode ter estudado Direito, pois, em 1509 é bacharel em Decretos .
Não existem documentos sobre os seus estudos nem sobre a sua carreira académica na universidade de Lisboa. Quanto a ser bacharel em Decretos, é a bula pontifícia abaixo indicada que no-lo refere. E, quanto a ter o grau académico de doutor, é o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, impresso em 1516, que no-lo diz, ao incluir várias poesias do “ Doutor Francisco de Saa.” Mas, como se verá, quando foi impresso aquele cancioneiro, Sá de Miranda ainda não era doutor e não foi na nossa universidade que adquiriu aquele grau académico. Será que Francisco de Sá de Miranda estudou na universidade de Salamanca e não na de Lisboa? Seu irmão Mem ou Mendo de Sá estudará em Salamanca, embora seja em Roma que haverá de se doutorar, como, aliás, já tinha acontecido com seu irmão Francisco.
Uma bula pontifícia de 10 de Fevereiro de 1509, do papa Júlio II, concede a Francisco Sá , bacharel em Decretos , de 22 anos de idade, e embora filho de presbítero e mulher solteira, a igreja de S. Julião de Mouronho, da diocese de Coimbra.( Chartularium Universitatis Portugalensis, Vol. X,pág.386-7).
Se, á data da mencionada bula pontifícia, Francisco de Sá de Miranda tinha 22 anos, o seu nascimento deve ter ocorrido em 1487 ou, muito mais provável, em 1486, levando em linha de conta a data da bula. Além disso, naquela data era bacharel em Decretos. A ser verdade que frequentou a Universidade de Lisboa, terá obtido o grau de bacharel no ano anterior à mencionada bula papal, isto é, em 1508 e terá ingressado na universidade em 1503, com 16 ou 17 anos, uma vez que, então, aquele grau académico só era conferido a quem tivesse, pelo menos, 5 anos de frequência universitária ( Theophilo Braga, Historia da Universidade de Coimbra, I vol.,pág.299).
A 8 de Agosto de 1515, Francisco Sá de Miranda, reitor da igreja de S Julião de Mouronho, da diocese de Coimbra, pede a igreja de Santa Maria de Duas Igrejas da diocese de Braga, por D. Miguel da Silva ter renunciado a esse e a outros benefícios ( Chartularium Universitatis Portugalensis, Vol. XI,pág 335-6) . Por aqui já se pode aquilatar das relações de Sá de Miranda com o grande humanista D. Miguel da Silva, então embaixador permanente de Portugal junto Vaticano e no Concílio de Latrão. E as portas que este lhe deve ter aberto em Itália, sabendo como se sabe que aquele ilustre português era tido por um dos homens mais cultos e admirados em Roma, e amigo íntimo daqueles que viriam a ser os papas Clemente VII - 1523-1534 e PauloIII – 1534-1549!. Baldassare Castiglione dedicar-lhe-á a sua famosíssima obra “ Il Libro del Cortegiano” , publicado em 1528 ( Francisco Marques, Quatro Cardeais Portugueses em Roma,3- D. Miguel da Silva)
A 16 de Agosto do mesmo ano, Francisco de Sá de Miranda pede que a igreja de S Mamede do Vale do Ermigo seja anexada à sua de S. Julião de Mouronho, por ter vagado ( idem pág.338-9). O poeta do Neiva devia ter necessidade proventos. Seria para fazer face às despesas com as suas estadias em Itália junto do seu amigo, D. Miguel da Silva?
Por súplica de 18 de Maio de 1518, D. Miguel da Silva pede ao Papa que a comenda, que, por sua renúncia, havia sido dada a Francisco Sá de Miranda , cavaleiro da Ordem Cristo , da igreja de Santa Maria de Duas Igrejas da diocese de Braga, voltasse à sua posse , caso ele a cedesse ou a deixasse, para não ser muito prejudicado com as renúncias que fez, agora que é embaixador do rei de Portugal junto do papa e da Santa Sé. ( idem, pág.576-7). Através desta petição ao Papa ficamos a saber, pelo seu amigo D. Miguel da Silva, que Francisco de Sá de Miranda, pelo menos à data, era cavaleiro da Ordem de Cristo.
Por súplica de 12 de Junho de 1523,” Miguel da Silva, embaixador del-rei D. João III junto do papa e escritor apostólico… e João Dias, clérigo da diocese de Braga, em questão com Francisco de Sá, cavaleiro professo da Ordem de Cristo e familiar contínuo comensal do dito embaixador, bem como doutor em Direito Canónico com rigor de exame, sobre a igreja paroquial de Duas Igrejas, da diocese de Braga. João Dias dispunha-se a deixar na posse pacífica desta igreja Francisco de Sá, resignando tanto ele como o dito D. Miguel a qualquer direito que nela lhes assistisse, já que o dito Francisco usufruía da dispensa para conservá-la em título ou comenda, juntamente com a igreja paroquial de S. Julião de Mouronho, da diocese de Coimbra, e manter o hábito de freire da Ordem de Cristo vitaliciamente “( idem, vol. XII, pág.296-99) Este acordo
será ratificado já por Clemente VII, por bula de 26 de Novembro de 1523( idem, pág 346-49). Por aqui se vê que, quando casou, o poeta já tinha a comenda de Duas Igrejas. Além disso, fica-se com a certeza de que Sá de Miranda não se doutorou na Universidade de Lisboa, mas em Itália, certamente na Cúria papal. E não é despiciendo lembrar que na mencionada súplica é apresentado como ”familiar continuo comensal” de D. Miguel.
Por súplica de 5 de Janeiro de 1524, “Miguel da Silva, familiar contínuo comensal do papa Clemente VII e embaixador de D. João III, rei de Portugal, protonotário da santa Sé e escritor apostólico, bem como tesoureiro e cónego de Coimbra, e de Francisco de Sá de Miranda, clérigo da cidade de Coimbra, cavaleiro da Ordem de
Cristo, doutor em ambos os Direitos e familiar continuo comensal do dito mestre Miguel da Silva, os quais possuíam, respectivamente, a tesouraria, canonicato e prebenda de Coimbra e a igreja de S. Julião de Mouronho, da diocese de Coimbra, e a de Duas Igrejas, da diocese de Braga, unida durante a sua vida àquela por dispensa apostólica, sobre a colação da tesouraria, canonicato e prebenda de Coimbra, a que se dispunha resignar D. Miguel a favor de Sá de Miranda. Pede-se para este envergar o hábito da Ordem de Cristo só secretamente, de modo que o canonicato e a prebenda lhe sejam conferidos em título como a clérigo secular, reter ambas as igrejas vitaliciamente, e dizer o ofício divino ou horas canónicas segundo costume da igreja de Coimbra, e não segundo os estatutos da Ordem de Cristo. Aqueles benefícios, com a morte, cedência ou demissão do titular, regressarão ao seu possuidor originário”( idem, pág.371)
Por bula do mesmo dia,” o papa Clemente VII concede a Francisco Sá de Miranda, freire da Ordem Militar de Cristo e doutor em ambos os Direitos, os canonicato e prebenda de Coimbra, vacantes por renúncia do mestre Miguel da Silva, clérigo de Lisboa, notário e escritor apostólico e embaixador del-rei D. João III junto do papa. Antes, sendo filho de um sacerdote, cónego de Coimbra, e mulher solteira, conseguira indulto para ser promovido a todas as ordens, em virtude do qual tinha abraçado o estado de clérigo e obtido a igreja de S. Julião de Mouronho, da diocese de Coimbra.. A seguir foi-lhe concedida a igreja paroquial de Duas Igrejas , da diocese de Braga, unida à de Mouronho e a tesouraria de Coimbra” ( idem, pág.373)
Por súplica de 23 de Fevereiro de 1524, “ Francisco de Sá, tesoureiro e cónego da sé de Coimbra pede prorrogação do prazo de tempo para receber as ordens sacras exigidas por estes benefícios, sem incorrer em alguma pena e sobre indulto de posteriormente lhe conferir tais ordens qualquer bispo católico, em comunhão com a santa Sé, em três dias de domingo ou festivos, sem ter que observar o tempo prescrito pelo Direito” ( idem, pág. 387).
A 31 de Março do mesmo ano, Francisco Sá de Miranda, tesoureiro e cónego de Coimbra volta a pedir a prorrogação do prazo para receber ordens sacras, incluindo as sacerdotais, podendo fazê-lo fora da Cúria romana (idem,pág.398) e reitera o pedido a 26 de Maio do mesmo ano ( idem,pág.500)
Por súplica de 23 de Fevereiro de 1527, D. Miguel da Silva, bispo eleito de Viseu, pede o regresso à tesouraria, canonicato e prebenda de Coimbra, a que Francisco Sá de Miranda tinha renunciado nas mãos do ordinário (Idem,vol.XIII, pág.215).
Na data referida já ambos se encontravam em Portugal. D. Miguel da Silva havia sido eleito bispo de Viseu no ano anterior, embora àquela data ainda não tivesse sido sagrado. E o Doutor Francisco Sá de Miranda já tinha ido a Coimbra renunciar àqueles benefícios junto do bispo, como se depreende do citado documento.
Quando, em 1515, Francisco Sá de Miranda pede ao papa a igreja de Santa Maria de Duas Igrejas, da diocese de Braga, por D. Miguel da Silva ter renunciado, já este era
embaixador de Portugal em Roma. Nos documentos de 1523 e 1524 Francisco Sá de Miranda é apresentado como sendo” familiar contínuo comensal” de D. Miguel da Silva. O que pressupõe que o poeta do Neiva fazia parte do séquito do embaixador de Portugal, vivendo na Cúria romana
. Por isso, é legítimo pensar que Francisco Sá de Miranda terá acompanhado aquele, quando foi para Roma, a mando de D. Manuel, como embaixador junto do papa e do concílio de Latrão. Também é legítimo pensar que D. Miguel renunciou àquela igreja para beneficiar o seu amigo, com falta de réditos. E, por isso, é que no mesmo mês de Agosto de 1515, Francisco de Sá de Miranda , reitor da igreja de S. Julião de Mouronho, da diocese de Coimbra, pede que àquela seja anexada a de S. Mamede do Vale de Ermigo, por ter vagado. Pois, assim aumentaria os seus proventos.
Em 1518, Francisco de Sá de Miranda já é cavaleiro da Ordem Militar de Cristo, com todos os benefícios que daí lhe podem advir, mesmo casando, como veio a acontecer, com a comenda de Duas Igrejas, concedida por D. João III, mas de que já era reitor por renúncia de D. Miguel da Silva e posterior acordo com o clérigo de Braga, João Dias.
Em 12 de Junho de 1523, Francisco de Sá é identificado como cavaleiro professo da Ordem de Cristo, e “familiar continuo comensal” do embaixador e “ainda doutor em Direito Canónico com rigor de exame”. É o primeiro documento a fazer referência ao doutoramento em Direito Canónico de Francisco de Sá de Miranda. Mas, nesse mesmo ano, deve ter feito o doutoramento em Direito Civil, porque, nos documentos do ano seguinte, de 5 de Janeiro de 1524, em que passa a ser tesoureiro e cónego e a deter a prebenda da sé de Coimbra, por renúncia, mais uma vez de D. Miguel da Silva , já se refere que é doutor em ambos os direitos .
Não se pode deixar de realçar que na bula de 5 de Janeiro de 1524, se diga expressamente que :”Antes, ( Francisco de Sá de Miranda) sendo filho de um sacerdote, cónego de Coimbra, e mulher solteira, conseguira indulto para ser promovido a todas as ordens, em virtude do qual tinha abraçado o estado de clérigo e obtido a igreja de S. Julião de Mouronho, da diocese de Coimbra.. A seguir foi-lhe concedida a igreja paroquial de duas Igrejas , da diocese de Braga, unida à de Mouronho e a tesouraria de Coimbra”. Só depois de se ter encontrado a carta de perfilhação e legitimação, de 1490, é que ficamos a conhecer o nome de sua mãe.
Que o doutor in utroque iure vivia na Cúria romana com o embaixador, depreende-se também, para além do que já acima foi dito, do facto de, ao pedir o adiamento para tomar ordens sacras – que não chegará a tomar – solicitar que lhe seja concedido fazê-lo “fora da Cúria romana”.
Dos mencionados documentos constata-se que em 1509 Francisco de Sá de Miranda é bacharel em Decretos e só em 12 de Junho de 1523 é que se afirma que é doutor em Direito Canónico “com rigor de exame” e, em 5 de Janeiro do ano seguinte, já é doutor nos dois Direitos. Por isso, não restam dúvidas que o doutoramento foi-lhe conferido por uma universidade romana, e não pela Universidade de Lisboa. É verdade que
Garcia de Resende o trata por doutor no seu Cancioneiro, publicado em 1516. Mas o primeiro documento oficial, onde lhe é atribuído esse grau académico é o acima mencionado, de 1523. Como se explica, então, o tratamento de doutor no Cancioneiro? Pelos vistos, então como agora, os bacharéis eram ou podiam ser tratados por doutores. O notário de Esposende, na década de sessenta do século passado, era bacharel em Direito, e toda a gente o tratava por senhor Doutor Zacarias. Por isso, nada mais natural que Garcia de Resende o tratasse por doutor, à semelhança das outras pessoas que não tinham preocupações académicas. Diferente seria se estivéssemos em presença de um documento oficial.
Os seus biógrafos afirmam que foi durante os seus estudos na nossa universidade que Francisco de Sá de Miranda conheceu e se tornou grande amigo de Bernardim Ribeiro. Como já ficou referido, desconhece-se em absoluto qualquer documento que ateste a sua passagem pela Universidade de Lisboa, não obstante a certeza de que em 1509 era bacharel em Decretos. O mesmo, no entanto, não acontece com Bernardim Ribeiro. Pois, existem vários documentos que confirmam a sua vida académica na nossa universidade; designadamente, o seu pedido de concessão do grau de bacharel em Cânones, bem como a tomada do mesmo, em 5 de Agosto de 1511 ( Auctarium Chartularii Unuiversistatis Portugalensis, Vol. I, pág. 183 e 187).
O biógrafo desconhecido do poeta do Neiva estava completamente equivocado, ao escrever: " Despois das primeiras letras de humanidade ( em que foy insigne) estudou leys mais em obsequio ao gosto del Rey D. João o Terceiro, que de novo plantara então a Universidade na sua terra, que por inclinação que tivesse àquella maneira de vida, e comtudo obedecendo a seu pay que lha escolhera, continuou nella com felices progressos, e sahio grande letrado, tomou o grao de Doutor, e leo varias cadeiras daquella faculdade em sua propria patria"( In As Obras do Doctor Francisco de Saa de Miranda, por Vicente Alvarez. Anno de 1614). Por aqui se orientaram os sucessivos biógrafos de Sá de Miranda. Só que a fonte onde foram beber encontrava-se, como se encontra, totalmente inquinada, como facilmente se depreende do que acima se deixou dito. Em 1509, Sá de Miranda, com, pelo menos, 22 anos de idade, já era bacharel em Direito Canónico e reinava D. Manuel. D. João III só ascendeu ao poder em 1521, após a morte do pai. E só em 1537 é que transferiu definitivamente a Universidade para as margens do Mondego, quando Francisco de Sá de Miranda já se encontrava, há muito tempo, a desfrutar o remanso da sua comenda de Duas Igrejas, atravessada pelo ainda bebé rio Neiva, que nasce pouco acima.
Como resulta de toda a documentação acima transcrita, Francisco de Sá de Miranda foi clérigo, prior das igrejas de S. Julião de Mouronho, da diocese de Coimbra, e da de Santa Maria de Duas Igrejas , da diocese de Braga, e, durante algum tempo, teve a tesouraria e a prebenda da Sé de Coimbra, sendo também cônego da mesma. No entanto, não chegou a receber ordens sacras e trajava de clérigo secular, trazendo encoberto o hábito da Ordem de Cristo, beneficiando, assim, da sua condição de clérigo e da de freire da Ordem de Cristo.
Quando regressa a Portugal, deixa de ser clérigo, mas continua a ser cavaleiro da Ordem de Cristo e é nessa qualidade que D. João III, como Mestre supremo da ordem, lhe conferirá definitivamente a comenda de Duas Igrejas, para onde se retirará, fugindo ao bulício da corte. D. João II e depois D. Manuel, através do cardeal D. Jorge da
Costa, tudo fizeram para obter do Papa dispensa do voto de castidade para os freires da Ordem de Cristo. O que acabaram por conseguir, ficando os freires obrigados apenas à castidade matrimonial. Por isso, o poeta do Neiva casou com a irmã de Manuel Machado de Azevedo, senhor das Casas de Castro, Vila de Amares e das Terras de Entre o Homem e o Cávado, D. Briolanja de Azevedo ( Marquês de Montebelo, Vida de Manuel Machado de Azevedo, impresso por Pedro Garcia de Paredes, 1660,pág.84). Casamento que se efectuou antes do dia 3 de Maio de 1530, pois nesse dia outorgaram uma escritura na quinta do Crasto , sendo já casados.( José de Sousa Machado, O poeta do Neiva, Braga,1928, pág.321-23). Foi através das compras que foi fazendo de terrenos na freguesia de Fiscal - Amares - que formou a quinta, onde edificará de raíz a Casa da Tapada, para onde se transferirá, no ano de 1552 e aí residia, quando a morte o surpreendeu em 1558.
Em 1525, D. João III, receando que Clemente VII desse o barrete cardinalício a D. Miguel, que já o havia recusado, em detrimento de seu irmão D. Henrique, nomeia seu embaixador D. Martinho de Portugal e dá ordens a D. Miguel para regressar a Portugal. D. Miguel da Silva regressa ( Francisco Marques, obra citada). O doutor Francisco de Sá de Miranda deve ter chegado a Portugal em fins de 1526, princípio de 1527, pois como já se referiu a 27 de Fevereiro já havia renunciado, na presença do bispo, aos seus benefícios provenientes da Sé de Coimbra.
Os seus biógrafos, dizem que Francisco de Sá de Miranda foi para Itália, depois da morte do pai em 1521.Têm esse entendimento, entre outros, Teófilo Braga ( História da Literatura Portuguesa,Livraria Chardron,1914, vol.II,pág.150 e segs.) e Carolina Michaelis de Vasconcellos ( Poesias de Francisco de Sá de Miranda, Halle, Max Niemeyer,1885,pág. VIII e segs.). Mas, como já se deixou referido, os documentos transcritos permitem-nos afirmar que em 1515 já se encontrava em Roma, integrando o séquito do embaixador de Portugal junto da Santa Sé. Por isso, tudo leva a crer que Sá de Miranda permaneceu em Itália cerca de 10 anos. Durante esse tempo não só obteve o doutoramento in utroque iure , como teve oportunidade de percorrer os grandes centros humanísticos de então, a que alude na sua poesia. Dada a projecção cultural de que gozava D. Miguel da Silva, fácil se tornou a Francisco de Sá de Miranda integrar-se nas famosas tertúlias que então se encontravam disseminadas pelos palácios dos nobres, aí contactando e travando amizades com os expoentes máximos do Humanismo italiano, seguidores dos novos modelos literários. Aí pode beber a água pura, proveniente das fontes grega e romana, que, todos os dias, os grandes impressores punham cá fora, desde Homero e Anacreonte, passando por Virgílio, Horácio, Catulo, Plauto, Terêncio, Cícero, Séneca e tantos outros. Aí dialogou com Sannazaro, Castiglione, Ariosto, Bembo, Sadoleto, Paolo Giovio, Gian Giorgio Trissino, autor da primeira tragédia europeia, em moldes clássicos, a “Sophonisba”, publicada em 1515, sendo a “Castro” do Doutor António Ferreira a segunda. E esta é um saborosíssimo fruto das sementes espalhadas na úbere terra lusa pelo Doutor Francisco de Sá de Miranda. Por isso, com toda a razão, o seu maior discípulo, o Doutor António Ferreira escreveu:
“ Novo mundo, bom Sâ, nos foste abrindo
Com tua vida e com teu doce canto
Nova agoa e novo fogo descobrindo:
Não resplandecia antes o sol tanto.” (Poemas Lusitanos, por Pedro Crasbeeck. MDXCVIII, fól.188,v)
A obra poética do Doutor Francisco de Sá de Miranda foi coligida e impressa pela primeira vez, 37 anos após a morte do poeta, por Manoel de Lyra, com o título que segue:
Na parte final, traz a comédia “Os Estrangeiros”, que já não aparece na segunda
edição. Esta traz, pela primeira vez, a Vida do Doutor Francisco de Sá de Miranda, por
autor anónimo , e ostenta o seguinte título:
Este exemplar traz o retrato de Sá de Miranda, que apareceu, pela primeira vez , na edição “ Satyras de Francisco de Sá de Miranda, Porto, 1626”. No entanto, o outro exemplar, que possuo, da mesma edição, já não o traz. É que a encadernação deste último é contemporânea, em pergaminho, enquanto a do primeiro é relativamente recente.Por isso, ao encaderná-lo, aproveitaram para lhe introduzir aquela gravura.
P E D R O N U N E S
P E D
R O N
U N E S
129- PETRI NONII
SALACIENSIS DE ARTE
ATQUE RATIONE NAVIGANDI LIBRI DUO
EIUSDEM IN THEORICAS
PLANETARUM GEORGII PURBACHII ANNOTATIONES, ET IN PROBLEMA MECHANICUM
ARISTOTELIS DE MOTU NAUIGII EX REMIS ANNOTATIO UNA.
EIUSDEM DE ERRATIS ORONTII FINOEI LIBER UNUS.
EIUSDEM DE CREPUSCULIS
LIB. I. CUM LIBELLO ALLACEN DE CAUSIS CREPUSCULORUM.
CONIMBRICAE, IN
AEDIBUS ANTONII À MARIIS, UNIUERSITATIS
TYPOGRAPHI. ANNO 1573, CUM FACULTATE INQUISITORIS.
O frontispício
ostenta uma bela gravura do escudo português. No verso, vem a carta
nuncupatória do impressor António Mariz a D. Sebastião, datada de 12 de Agosto
de 1573, a que se segue a carta de Pedro Nunes ao leitor. Seguem-se depois “As
principais considerações sobre o livro primeiro e sobre o livro segundo”.
Depois apresenta “O que de importante anotamos
em Theoricas Planetarum de Jorge Purbáquio” . Vem a seguir a “ Figura do instrumento náutico a que os
Hispanos chamam agulha”. Vem depois,
sempre em duas colunas, o texto propriamente dito da obra mais importante de
Pedro Nunes a ARTE E A CIÊNCIA DE
NAVEGAR, que se estende da página 1 à 126, sendo as últimas seis páginas
preenchidas com “Uma anotação a um problema de Aristóteles acerca do movimento
do barco a remos”; segue-se “ ALGUMAS ANOTAÇÕES ÀS TEORICAS DOS PLANETAS DE JORGE
PURBÁQUIO, da página 127 à 201,
terminando com o cólofon COIMBRA, NA
OFICINA DE ANTÓNIO DE MARIZ. ANO 1573. (1)
(1)- Como é óbvio, não
vou entrar na análise científica da obra. Pois, como diz o Povo, “ Quem te
manda a ti, sapateiro, tocar rabecão”…. Para tanto, aconselho a leitura do IV
Volume das OBRAS DE PEDRO NUNES, com a direcção científica do
conceituadíssimo Prof. Henrique Leitão,
edição da F. C. Gulbenkian
Na carta
nuncupatória, António Mariz escreve : “ quo maior accessio fieret, addendum
putaui eiusdem autoris libros , de Erratis Orontii Finaei, et de crepusculis
iam olim apud nos editos… para tornar a obra mais volumosa pensei
acrescentar-lhe do mesmo autor os livros de Erratis Orontii Finaei e de crepusculis já por nós há tempos editados”.. Daqui se
infere que a verdadeira data de impressão daqueles dois livros não é 1573, mas
1571,tendo sido colocado por cima do 1 o algarismo 3. A propósito o preclaro
Professor Joaquim de Carvalho escreveu: “ Para reunir estas obras num volume
só, dada a impossibilidade de se numerarem seguidamente as respectivas páginas,
impunha-se o que realmente se fez: datar do mesmo ano todos os escritos, e
exarar no frontispício os títulos das obras que o compunham. Nestas condições,
compreende-se que ao terminar a impressão das obras realmente impressas em 1573
se actualizasse a data dos tratados impressos em 1571, e se pejasse
inesteticamente o frontispício inicial, manifestamente concebido e desenhado
apenas para aquelas três obras, com a menção, em corpo menor e em caracteres
diversos, do De erratis Orontii Finaei e do De crepusculis” ( In Pedro Nunes,
Obras Vol. II de Crepusculis, Imprensa Nacional de Lisboa,1943, pág.284).
Pela carta de
António Mariz a D. Sebastião ficamos a saber que Pedro Nunes foi professor do
próprio rei e também dos tios paternos e ainda que era considerado o maior
matemático daquele tempo. Escreveu Mariz: “ Acessit auctoris dignitas et excellencia inter omnes huius
aetatis mathematicos. Cuius rei quando et admirabilis demonstrandi facilitas et
plena eruditionis opera, fidem non facerent, efficax argumentum esset, quod
patrui tui, huius regni príncipes ( quibus nihil non magnum placuit) eo
praeceptore usi sunt, et tu tandem, rex inclyte, eiusem doctrinam probes, ac
mathematica praecepta libenter audias”.
Os DOIS LIVROS DA ARTE E CIÊNCIA DE NAVEGAR,
bem como os demais escritos latinos acima descritos, saíram, pela primeira vez,
em Basileia, em 1566, mas com muitos erros. O que deixou Pedro Nunes muito
desgostoso. Ao menos nesta edição, o autor já pode acompanhar a sua impressão e
corrigir os erros, entretanto, detectados. Daí o seu enorme valor. Pois foi a
última edição feita em vida do autor. No entanto, e na apreciação de Henrique
Leitão,” este é o livro mais importante de Pedro Nunes. Acerca dessa
importância é bem eloquente o facto de ser a primeira obra publicada por Nunes
fora de Portugal, já que até então todos os seus livros haviam sido confiados a
tipógrafos nacionais “ ( obra citada na nota anterior, pág. 518).
Em “As principais
considerações sobre o livro segundo”, Pedro Nunes nomeia os principais
cientistas estrangeiros com os quais não está de acordo. Entre eles cita João
Monterégio, Alberto Pighe, Marco Beneventano, João Shöner e Jerónimo Cardano,
sobre quem adiante falermos. No entanto, não faz referência a nenhum nacional,
designadamente, a Diogo de Sá, que o havia criticado na sua obra De Nauigatione
Libri Tres, publicada em Paris , em 1549, e a que nos referimos no volume II.
Pedro Nunes começa
a obra, lembrando que Martim Afonso de Sousa, em 1530, a mando de João III,
havia navegado até ao rio da Prata e, quando três anos depois, regressou (1),
apresentou-lhe várias questões, às quais responde na presenta obra. Daqui
pode-se inferir que Martim Afonso de Sousa também foi seu aluno. E começa o
livro II enaltecendo os feitos náuticos dos Portugueses nestes termos :
“ Lusitanorum nauigationes hoc saeculo factas admirabiles
esse nemini incompertum est. Lusitani enim Oceanum transnatare ausi sunt: nouas
repererunt insulas antiquitati prorsus incognitas, noua littora, noua maria,
nouos atque nunquam visos populos. Non eos perterruit ingens calor exustae
zonae, neque immodicum frigus gelidae,quin continuis profectionibus tandiu
nauigarent, donec ultra aequinoctionalem ingens illud Aphricae promontorium,
quod bonae spei caput appellant, praetervecti, iterumque ln Borealem plagam se
recipientes , Aethiopicum mare quod in Troglodytica est, Arabicum, Persicum,
transgressi in Indiam tandem appulerint. Inde vero ultra Gangem , ultra
Taprobanam , in regionem Sinarum , atque
in insulas ad orientem Solem maxime spectantes peruenerunt. Haec uero ab eis
nec temere quaesita, nec casu reperta fuerunt. Gestabant enim Astronomica
instrumenta ad astrorum obseruationes , tabulasque motus Solis et Lunae, a Mathematicis
numeris atque certa ratione designatas:
illud praeterea viuum diuinumque organum
priscis hominibus incognitum,quod
acum nauticam appellant.– As admiráveis navegações dos Portugueses, feitas
neste século, ninguém as pode ignorar. Pois, os Portugueses ousaram atravessar
o Oceano: descobriram novas ilhas, totalmente desconhecidas da antiguidade,
novas costas, novos mares, e novos povos até então nunca vistos. Nem o enorme
calor da zona tórrida, nem o excessivo frio das regiões geladas, os impediu de
navegarem em contínuos avanços para além da equinocial, dobrando aquele enorme
promontório de África, a que chamam Cabo da Boa Esperança, e regressando de
novo à região boreal, tendo atravessado o mar etíope, que é a Troglodita, o
arábico e o pérsico , aportaram
finalmente à Índia. E a partir daqui foram além do Ganges, da
(1)- Em 12 de Março
de 1534, Martim Afonso de Sousa largará do Tejo rumo à Índia, para onde vai
como Capitão-Mor, levando consigo o grande Garcia d’Orta; e, quando em Março de
1541, regressar à Índia, agora como Governador, levará S. Francisco Xavier e os
seus companheiros jesuítas.
Taprobana, e chegaram à região da China e às tão desejadas ilhas orientais. Mas isto não foi procurado às cegas nem
descoberto ao acaso. Usavam instrumentos astronómicos para observações dos
astros, e tabelas do movimento do sol e da lua, feitas por matemáticos com
números e cálculos certos, além disso, usavam aquele vivo e divino instrumento,
desconhecido dos homens antigos, a que chamam agulha náutica” ( pág.8).
Pelo que escreve
mais adiante, ficamos a saber que, em 1555, Pedro Nunes encontrava-se a redigir
esta obra: “ Postea vero anno a Christo nato 1555 labente, die 14
mensis Septembris minimam ipsius Solis a
vertical puncto distantiam reperimus Gr.
40 minu. 40.- Mas, depois, no dia 14 do
mês de Setembro do corrente ano do nascimento de Cristo de 1555, observamos que a distância mínima do
sol ao zénite era de 40º40’ “ ( pág. 41).
Ao ocupar-se
de IN PROBLEMA MECHANICUM
ARISTOTELIS DE MOTU NAUIGII EX REMIS ANNOTATIO UNA,
Pedro Nunes
revela-nos que, nas suas aulas, debatia com os alunos, os problemas de que se
ocupa nas suas obras : “ Cum olim discipulis nostris mecanicas Aristotelis
questiones interpretaremur, nonnula circa problema illud annotauimus, cur magis
procedat nauigium, quam remi palmula in contrarium. Arist. enim ratiocinatio obscura est: quam
nos tamen ut aliquid lucis haberet, ad hunc modum explicauimus : et propter materiae
similitudinem hisce nostris libris de
Nauigandi ratione adiunximus- Quando
outrora interpretamos para os nossos alunos as questões mecânicas de
Aristóteles, fizemos algumas observações acerca daquele problema porque é
que o barco avança mais que a pá do remo em sentido contrário. Já que o
raciocínio de Aristóteles é obscuro, nós, para que tenha alguma luz, explicamo-lo doutro
modo e, por causa da semelhança da matéria, juntamo-lo a estes nossos
livros Sobre a Ciência de Navegar”( pág.
121).
Como se vê, Pedro
Nunes, não só nos dá a conhecer a sua abordagem com os alunos dos assuntos que
versa nas suas obras, como também nos explica a razão pela qual incluiu neste
livro aquele problema de Aristóteles.
As obras contidas
neste volume, porque escritas em latim, a língua da ciência e da cultura de
então, foram as que maior divulgação tiveram na Europa e as que mais longe
levaram o nome do Salácia, tendo tido uma importância enorme na história da
náutica.
Através dos
séculos muitos especialistas se debruçaram sobre esta obra de Pedro Nunes. O
mais recente ( 2005) foi o francês Raymond D’Hollander, a quem se devem algumas
das mais interessantes e perspicazes observações sobre o valor do trabalho do
matemático português, como nos recorda o citado cientista português ( ob. cit.,
pág.538).
Pedro
Nunes nasceu na romana Salácia, depois Alcácer do Sal, no ano de 1502, como o
próprio nos lembra, quando escreve na obra a seguir descrita : Exempli gratia,
sit anno 1502, quo ego natus sum…Por exemplo, seja o ano 1502, ano em que eu
nasci…( pag.135)
130- IN THEORICAS PLANETARUM GEORGII
PURBACHII ANNOTATIONES ALIQUOT, PER
PETRUM NONIUM SALACIENSEM.
Já no volume II me referi a Jorge Purbáquio e ao entusiasmo
que as netas de D. Manuel, as Infantas D. Maria e D. Catarina, punham no estudo
das Teóricas dos Planetas de Purbáquio ( pág. 86).
Como também já se
escreveu, esta é a segunda edição da obra, que havia sido impressa, pela
primeira vez, em Basileia, em 1566.
Ficou referido no
volume anterior que André Avelar tomara posse da cadeira de Matemática a 4 de
Janeiro de 1592, vaga desde a jubilação de Pedro Nunes em 1562 ( pág.265). No
seu ensino André de Avelar, explicando as Theoricae Planetarum, citava com
frequência o texto de Pedro Nunes.” Assim o atestam as notas de aulas de Avelar
que se conservam presentemente num volumoso manuscrito na Biblioteca del Real
Monasterio del Escorial” (Henrique Leitão, in Pedro Nunes, Obras, Vol. V
In Theoricas Planetarum Georgii Purbachii Annotationes, F. C. Gulbenkian, pág.352
).
O jesuita Cristóvão Clávio, alemão que estudou no Colégio das
Artes, em Coimbra – e de quem adiante nos ocuparemos-, tornou-se um dos maiores
admiradores e divulgadores das obras de Pedro Nunes. “ Tendo entrado no
currículo jesuíta pela mão de Clávio, os trabalhos de Pedro Nunes, e em
particular as suas Anotações às Teóricas
dos Planetas de Jorge Purbáquio, foram referidos e comentados por muitos
matemáticos da Companhia de Jesus. De especial importância foi Giovanni
Battista Riccioli (1598-1671), o
famoso matemático e astrónomo jesuíta que se celebrizou pelas suas extensas
publicações científicas que alcançaram uma excepcional divulgação ( obr. cit., pág.356 ). E o Prémio Pessoa 2014, na página seguinte da obra citada, lembra-nos
que “ O número de autores que ao longo do século XVII referiram as Anotações às Teóricas dos Planetas de Jorge
Purbáquio é amplo e não é possível fazer mais do que dar indicações
rápidas”.
131- DE ERRATIS
ORONTII FINAEI, REGII MATHEMATICARUM LUTETIAE
PROFEEEORIS. QUI PUTAUIT INTER DUAS DATAS LINEAS,
BINAS MEDIAS PROPORTIONALES SUB
CONTINUA PROPORTIONE INUENISSE,
CIRCULUM QUADRASSE, MULTANGULUM
QUODCUNQUE RECTILINEUM IN CIRCULO DESCRIBENDI,
ARTEM TRADIDISSE, ET LONGITUDINIS LOCORUM
DIFFERENTIAS ALITER QUAM PER ECLIPSES
LUNARES, ETIAM DATO QUOUIS
TEMPORE MANIFESTASFECISSE.
PETRI NONII SALACIENSIS
LIBER UNUS.
SECUNDA EDITIO
CONIMBRICAE, EXCUDEBAT
ANTONIUS A MARIIS. ANNO 1573
Como acima se deixou dito, muito embora conste como data de
publicação o ano de 1573, a verdadeira data é 1571, como decorre da carta
nuncupatória de António Mariz.
A primeira edição
desta obra saiu dos prelos de João Álvares e João Barreira, em Coimbra, no ano
de 1546, sendo esta a segunda, como, aliás, vem assinalado no
frontispício.
No verso do
frontispício, o livro enumera os assuntos que tratará para além da refutação
dos argumentos de Orôncio. Na página seguinte vem a carta de Pedro Nunes ao
leitor, onde a certa altura escreve :“Orontii enim errores pauci sunt, sed adeo insignes ut dissimulandi
non sint. Solum enim errat, cum mathematicas demonstrationes conficere, sed
raro audet- São poucos os erros de Orôncio, mas são tão grandes que devem ser
postos a nu. Só erra quando ousa fazer demonstrações matemáticas, o que
raramente acontece”. E mais adiante desabafa: “ Quem ego iam ante annos
tredecim , per literas admonere statueram, ut consultius et maturius inuenta
sua probaret, antequam foras emitteret. Sed mutaui consilium , quoniam id magis
eorum officium esse putaui, qui in eadem
urbe , in qua idem Orontius mathematicas
publice docet, iisdem artibus et
disciplinis instructi sunt.- Já há 13 anos ( 1533) estive decidido a advertir
epistolarmente Orôncio para que fundamentasse com mais prudência e maturidade
as suas invenções antes de as tornar públicas. Mas mudei de ideias, porque
pensei que isso incumbia antes aos instruídos nas mesmas artes e disciplinas da
cidade, onde ele ensina publicamente as Matemáticas”.
No início do
livro, a certa altura, escreve Pedro Nunes: “ Eu, porém, estou convencido que
Orôncio endoideceu mesmo; pois, doutro modo, teria reconhecido os seus
primeiros erros, cometidos doze anos antes e, por isso, aterrorizar-se-ia com
os novos e enormes que eu neste livro explicarei com muita clareza – Ego vero
eum puto insanisse, aliter enim primos errores suos ante duodecim annos
comissos agnouisset , et proinde hos nouos ingentesque formidasset, quos in hoc
libelo apertissime explicabo”( pág. 2).
Foi porque Orôncio, não só não corrigiu os seus
erros, como ainda cometeu mais, que Pedro Nunes se decidiu a escrever esta
obra, pois, confessa, também gostava que o corrigissem, caso ele próprio
errasse. Por aqui podemos aferir do carácter e do amor à verdade científica
deste grande Homem! No verso, começa o texto da obra, que se estende por 56
páginas.
Oronce Finé ou, na
forma alatinada, Orôncio Fineu - de que mais adiante se tratará -, foi lente de
Matemática no Colégio Real de Paris .
132- PETRI
NONII SALACIENSIS, DE
CREPUSCULIS LIBER UNUS.
ITEM ALLACEN
ARABIS VETUSTISSIMI, DE
CAUSIS CREPUSCULORUM LIBER
UNUS,,A GERARDO CREMONENSI IAM
OLIM LATINITATE DONATUS, ET
PER EUNDEM PETRUM
NONIUM DENUO RECOGNITUS.
SECUNDA
EDITIO
CONIMBRICAE,. EXCUDEBAT
ANTONIUS A MARIIS.
ANNO 1573.
Este livro é composto
por duas obras: De crepusculis , da
autoria de Pedro Nunes, e De causis crepusculorum, da autoria de
Allacen, traduzida do árabe para latim por Gerardo de Cremona e agora revista
por Pedro Nunes.
A primeira edição
desta obra saiu em Janeiro de 1542, impressa em Lisboa por Luis Rodrigues. A
qual foi dedicada a D. João III, em carta, datada de 18 de Outubro de 1541.
Pela carta de Pedro
Nunes a D. João, ficamos a saber que os tios de D. Sebastião a que alude
António Mariz na sua citada carta, são os príncipes de Luis e D. Henrique,
tios-avós daquele monarca. Com efeito, escreve Pedro Nunes na sua carta, referindo-se
a D. Henrique: “ Eum tu rex hummanissime decem abhinc annis, mathematicis
scientiis instituendum a me curasti. Didicit
ille diligentissime breuique tempore, Arithmetica et Geometrica Euclidis
elementa, Sphaerae tractatum , Theoricas planetarum, partem magnae astrorum
compositionis Ptolomaei, Aristotelis mecânica , Cosmographica omnia, Priscorum
quorundam instrumentorum usum, et nonnullorum etiam quae ego ad nauigandi artem
excogitaveram - Há dez anos, vós, rei
humaníssimo, mandastes-me ensinar-lhe as ciências matemáticas. Com muito zelo e
em pouco tempo aprendeu os elementos de Aritmética e Geometria de Euclides, o
Tratado da Esfera, as Teóricas dos Planetas, parte da magna composição dos
astros de Ptolomeu, a Mecânica de Aristóteles, toda a Cosmografia, e a prática
de alguns instrumentos antigos e também de alguns que eu havia inventado para a
arte de navegar ”. E, mais adiante,
refere-se ao príncipe D. Luis, também seu irmão, nestes termos: “ partim etiam
quod magnanimo Principi Infanti Ludouico
fratri tuo literarum studiosissimo , quotidiana lectione Aristotelis
libros exponam – além disso, todos os
dias leio e explico os livros de Aristóteles ao
Principe Infante D. Luis, vosso magnânimo irmão, muitíssimo aplicado às
letras”.
Pedro Nunes faz menção
expressa de “ alguns instrumentos que eu inventei para a arte de navegar”.
Certamente estará a referir-se ao Nónio, ao Anel graduado e ao Compasso para
cálculo de senos.
Também o biógrafo
do Infante D. Luis, D. Joze Miguel João
de Portugal, Conde de Vimioso, nos lembra que o Infante foi aluno de Pedro
Nunes, o que faz nos termos que seguem: “ Aprendeu as sciencias mais próprias
com o insigne Portuguez, e professor de todas Pedro Nunes ( cujo nome ninguem
pronunciou sem epitheto honroso) e fez tal progresso nellas pela viveza do
engenho, pela grandeza da comprehenção, e pela aplicação do estudo, que não
deixou mais acreditado o Mestre pela honra do magistério, que pelo fruto da
disciplina”( Vida do Infante D. Luiz, Antonio Isidoro da Fonseca, 1735, pág.4).
Muito embora não
faça qualquer alusão a ele, sabemos também que Pedro Nunes foi professor de D.
João de Castro. É Jacinto Freyre de Andrade que nos informa : “ Aprendeo as Mathemáticas com Pedro Nunez, o
maior homem, que desta profissão conheceo Portugal; fazendo-se tão singular
nesta sciencia , como se a houvera de ensinar. Nesta escola acompanhou o
infante Dom Luis, a quem se fez familiar…” ( Vida de Dom João de Castro, Quarto
Viso-Rey da India,Officina Craesbeeckiana,1651, pág. 2).
À carta nuncupatória segue-se um poema da
autoria de António Pinheiro. Natural de
Porto de Mós, Bispo de Miranda, primeiro e, depois, de Leiria, a ele nos
referimos no volume I ( pág. 147 e segs.) .
“ O De crepusculis revela, talvez como
nenhuma outra obra sua, o génio de Pedro Nunes , pela forma como cingiu
cientificamente o assunto,, criando-o, por assim dizer, de raiz, ao
desprendê-lo da maranha de obscuridades e erros, e estabelecendo coerente e
consistentemente a respectiva problemática, cujas soluções e demonstrações se constroem e encadeiam segunda a atitude
mental e o método que atingiram
expressão suprema e canónica com Euclides” ( Joaquim de Carvalho, Pedro Nunes,
Obras, Vol. II, Imprensa Nacional, pág.290).
“ Quando Pedro Nunes revia as derradeiras provas do seu
livro, em 1542, limava, porventura, Nicolau
Copérnico as últimas laudas do seu De
reuolutionibus orbium coelestium libri sex, publicado em 1543, mas pensado
e talvez escrito doze anos antes. Não sofrem paralelo as duas obras, a bem
dizer contemporâneas, quer na amplitude do objecto, quer no rasgo do
pensamento, quer na profundidade e vastidão da influência: o livro de Copérnico
assinala uma viragem na história da Ciência e na da posição do Homem no Universo, o de Pedro
Nunes é apenas a primeira consideração científica, desenvolvida, exacta e
encadeadamente demonstrada, do objecto de que se ocupa ( id., pág. 291). A obra
de Copérnico aparece com frequência encadernada no mesmo volume com as de Pedro
Nunes. Por aí já se pode aferir da importância que os cientistas atribuíam
também à obra do Salaciense.
Para determinar a
duração do crepúsculo, Pedro Nunes conta-nos que “ Em Lisboa, decorrendo o ano
da Salvação de 1541, no primeiro dia de Outubro, à tarde, com céu sereno,
observei da elevação mais alta da cidade, quando já não havia claridade da
parte ocidental, a estrela do Coração do Escorpião, tendendo para o ocaso, e
verifiquei que ela se elevava 5 graus acima do horizonte – Olysippone labente anno salutis 1541, prima die mensis
Octobris vesperi, sereno coelo, ex summa urbis arce, quum nihil splendoris iam
esset in parte occídua, obseruaui stellam cordis Scorpii tendentem in occasum, eamque
quinque gradibus supra horizontem eleuatam deprehendi”( pág.40). E mais adiante
informa-nos que, no nosso tempo, no dito horizonte de Lisboa, os crespúculos mais
curtos dão-se nos dias 26 de Setembro e 25 de Fevereiro – “Igitur breuissima
crepuscula nostra aetate 26 die Septembris et 25 Februarii in ipso horizonte
Olysipponensi”( pág.47).
Nas suas obras, Pedro Nunes autodenomina-se
“Salaciensis “, isto é, natural da
Salácia- Alcácer do Sal. Nascido, como ele o afirma e acima se referiu, em
1502. No entanto, a sua ascendência é de todo desconhecida. Até hoje ninguém
encontrou um documento que fosse, que nos dissesse quem foram os seus pais , os
seus avós ou os seus irmãos. Ficamos a saber pelos
seus netos, Matias Pereira e Pedro Nunes Pereira , presos pela
Inquisição na década de vinte do século XVII, que o avô havia ido muito cedo
para Salamanca. Aí casou em 1523 com Guiomar de Áreas, de quem teve vários filhos,
num casamento que durou mais de cinquenta anos. Pedro Nunes deve ter
permanecido em Espanha vários anos, de outra maneira não se explicaria a
desenvoltura com que dominava a língua castelhana, como transparece na sua
última obra “ Libro de Algebra en
Arithmetica y Geometria”, publicado em 1567.
Obviamente que o jovem Pedro Nunes deixou
a sua terra natal rumo a Salamanca para frequentar a Universidade das margens
do Tormes e, em 1526 era bacharel, segundo nos informa o Prof. Veríssimo Serrão
( Portugueses no Estudo de Salamanca,pág.197). Mas, em 1529, já se encontrava
em Portugal, pois D. João III, por carta de 16 de Novembro, nomeia-o seu
cosmógrafo com o mantimento anual de 20.000 reais ( Chartularium Universitatis
Portugalensis, Vol. XIII,pág.544) e, a 20 do mesmo mês ,encontrámo-lo,
juntamente com Garcia d’Orta, a fazer oposição à cadeira de Filosofia Moral (
Auctarium Chartularii Universitatis Portugalensis, Vol III, pág.9).
Estes dois factos, devidamente
documentados, leva-nos a concluir que Pedro Nunes já se encontrava em Lisboa há
algum tempo, quiçá desde 1527, frequentando a corte e até fosse já mestre do
Infante D. Luis, porque do Infante D. Henrique só virá a ser em 1531, como o
próprio refere na aludida carta nuncupatória. E ainda de D. João de Castro,
Martim Afonso de Sousa e outros, como também já se deixou dito. Doutra forma,
não se encontraria explicação para a sua nomeação régia. Foram os seus
conhecimentos, o seu saber, manifestados na corte, que levaram o monarca a
nomeá-lo “seu cosmógrafo”.
Em 4 de Dezembro é eleito lente de Lógica,
por substituição, na Universidade de Lisboa, e a partir de 15 de Janeiro de
1530 passa a ler as lições de Lógica, que eram do Mestre João Ribeiro ( 0br.
cit. pág.s 11 e 14 ). E, em 16 e 17 de 1532, tomou o grau doutor em Medicina,
tendo sido testemunha o já também licenciado Garcia d’Orta ( id., págs.61 e 66)
.
Em 14 e 15 de Fevereiro de 1534,o Doutor
Pedro Nunes foi examinador no exame de licenciatura do bacharel de medicina Diogo
Lopes; e, em 16 e 17 de Novembro de 1535, foi também examinador do bacharel em
medicina Luis Nunes ( id. págs. 206 e 299.).
Em 21 e 22 de Janeiro de 1537, sendo
reitor o seu homónimo, o desembargador Doutor Pedro Nunes, do Conselho e
Desembargo delRey, e último reitor dos Estudos Gerais em Lisboa, o Doutor Pedro Nunes, mais uma vez, integra
os cinco examinadores na licenciatura do bacharel em Medicina, Manuel de
Noronha ( id. pág.356).
Em 1 de Dezembro de 1537, Pedro Nunes faz
sair dos prelos de Germão Galharde, o TRATADO DA SPHERA, a única obra impressa
em português.
Com esta obra publica Pedro Nunes o
“Tratado em defensam da carta de marear”, onde escreve :
“ Nam ha duuida que as navegações deste
reyno de cem annos a esta parte sam as mayores mais maravilhosas de mais altas
e mais discretas conjeyturas que as de
nenhuma outra gente do mundo. Os Portugueses ousaram cometer o grande mar
Oceano. Entraram por elle sem nenhum receo. Descobriram nouas ylhas nouas
terras nouos mares nouos pouos: e o que
mays he: nouo ceo e nouas estrelas.
Perderanlhe tanto o medo que nem a grande quentura da torrada zona , nem o
descompassado frio da extrema parte do sul, com que os antigos scriptores nos ameaçauam lhes pode estoruar:
que perdendo a estrella do norte e tornandoa a cobrar: descobrindo e passando
ho temeroso cabo de Boa esperança, ho mar de Ethiopia, de Arabia, de Persia
poderam chegar a India . Passaram o rio Ganges tam nomeado a grande Trapobana e
as ilhas mais orientaes. Tiraramnos muitas
ignorâncias e amostraramnos ser a terra
mor que o mar e hauer hi
Antipodas…. Ora manifesto he que estes
descubrimentos de costas, ylhas e terras firmes nam se fizeram indo a acertar,
mas partiam os nossos mareantes muy ensinados e prouidos de estormentos e
regras de astrologia e geometria que sam
as cousas de que os Cosmographos ham
dandar apercebidos, segundo diz Ptolomeu no primeiro liuro da sua Geografia.” (
Pedro Nunes, OBRAS, 1940, vol. I, pág. 175-6). Pedro Nunes não perde uma
oportunidade para enaltecer o saber dos nossos navegantes e a cultura náutica
de que se encontravam imbuídos, bem como os feitos dos Portugueses, de que
nenhum outro povo no mundo se pode orgulhar. Ao aludir a “nouas estrelas” está
com toda a certeza a pensar no Cruzeiro do Sul, que os marinheiros portugueses
souberam destacar para lhes servir de guia nas navegações do hemisfério sul, e
que Camões celebra no Canto V, estrofe 14 :
“ Ja descuberto tinhamos
diante
La no
nouo Hemisperio noua estrella
Não
vista de outra gente, que ignorante
Alguns
tempos esteue incerta della” ( Lusíadas,
edição de 1584, fól.127v).
Em 1542, tendo como impressor João
Rodriguez, Pedro Nunes publica o DE
CREPUSCULIS LIBER UNUS.
Com a transferência definitiva da
Universidade para Coimbra, Pedro Nunes, como docente que era, também se
transferiu para a cidade do Mondego, ficando a morar em instalações,
pertencentes ao Infante D. Henrique, como se depreende do Alvará régio de 16 de
Outubro de 1544, que lhe aumentou o ordenado, por ter sido nomeado lente da cadeira de Matemática por outro Alvará da
mesma data. Pois, tendo passado a receber 100.000 reais, “ perde a moradia
que tem do infante dom amrrique meu muito amado e prezado Irmão”( Mário
Brandão, Documentos de D. João III, vol. II, págs. 207 e 208).
Em 1546 e em Coimbra, sai dos prelos de
João Alvarez e João Barreira o DE
ERRATIS ORONTII FINAEI.
Por carta de 22 de Dezembro de 1547, D.
João III “ faz saber a quantos esta minha carta virem que avendo eu
respeito aos serviços que me tem feitos
e espero que ao diante fara o doutor Pero Nunez, meu cosmógrafo, e polla boa
informação que tenho de suas letras e substancia, e por folgar de lhe fazer
merce, tenho por bem e me praz de o
acrecentar a meu cosmografo moor, e lhe faço merce do dito oficio e quero
que elle tenha e goze de todos os priuilegios , liberdades, graças e
franquezas, que por rezão do dito oficio lhe direitamente pertencerem e asy que
tenha e aja com elle de ordenado em cada
hum anno cinquoenta mil rs,” ( Sousa Viterbo, Trabalhos Náuticos dos
Portugueses nos Séculos XVI e XVII, 1897, Parte I, pág.225-6).
Como se constata da acta do Conselho de 21
de Março de 1553, o lente de Matemática deslocava-se com frequência à corte,
convocado pelo rei, tornando-se necessário proceder à sua substituição durante
a sua ausência ( Actas dos Conselhos da Universidade de 1537 a 1557, Vol. II,
II Parte, pág. 34).
Pela acta do Conselho de 12 de Novembro de
1556, ficamos a saber que “ o doutor Pero nunez Cosmographomor que elle era
deputado e mais antigo em grao de doutor em mediçina que ninhum dos outros
deputados “ ( Actas …Vol. II, III Parte, pág.316). Embora lente de Matemática e
cosmógrafo-mor do reino, o grau académico de Pedro Nunes era Doutor em
Medicina.
No Conselho de 20 de Dezembro de 1557, “
apresentou o Doutor Pedro Nunes cosmógrafo
mor hum alvará delRei nosso Senhor de lembrança começava Eu elRei faço saber a
quantos este alvara virem que avia por bem que os quatro anos que ade residir
na sua corte emtemdendo nas cartas de
marear e exame dos pilotos e em outras
cousas de seu serviço e así os três anos que leo artes na universidade de
lisboa que se transferiu a esta cidade juntamente com matemáticas se lhe
ajuntem aos treze anos que nesta universidade tem lido pera jubilar com oitenta mil reais “…( id. vol III,
pág.94).
Da transcrição do dito alvará
decorre que a rainha-regente, D. Catarina
- D. João III havia falecido a 11 de Junho - pretendia que Pedro Nunes deixasse as aulas na
universidade para trabalhar na corte, nas cartas de marear, e ensino e exame dos pilotos, para além de outras coisas
e que os quatro anos em que iria trabalhar na corte contassem para a sua jubilação
com oitenta mil reais em cada ano, a pagar pela Universidade. O que não foi bem
recebido pela Universidade.
No entanto, em 1562 o Doutor Pedro Nunes jubila-se
com oitenta mil reais, a pagar em cada ano, em dias da sua vida, como, de forma
definitiva, ordenou D. Catarina, por carta de 22 de Julho de 1562- “ … sua
Alteza manda que se receba sua jubilação
e se lhe não rescreva mais sobre isso” ( Dr. J.M.Teixeira de Carvalho, Homens
de Outros Tempos, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1924, pág.98). E, desta
forma, pôs a Rainha ponto final à contenda, que opunha a Universidade à corte.
Em 1566, Pedro Nunes, já jubilado, faz publicar em Basileia o DE ARTE
ATQUE RATIONE NAUIGANDI
LIBRI DUO, bem como os outros
escritos latinos, acima descritos.
Em 1567, Pedro Nunes publica em Antuérpia a sua obra
“ Libro de Algebra en Arithmetica y Geometria “, que, em carta
datada de 1564, dedica ao cardeal D. Henrique, justificando, nos termos que se
seguem, a sua opção pela língua de Cervantes: “ E primeiramente a escreui em
nossa lingoa Portuguesa, e assi a uio V.A. mas despois considerando que ho bem
quanto mais commum e universal, tanto he mais excelente, e
porque a lingoa castelhana he mais comum em toda a Espanha que a nossa, por esta causa a quis trasladar
em lingoa castelhana para nella se auer de imprimir, porque não careça della
aquella nação tanto nossa vizinha, com a qual tanto communicamos, e tanta
amizade temos. “( Pedro Nunes, Obras, vol. VI, Imprensa Nacional, 1950, pág.
XIV-XV). Na mesma carta, Pedro Nunes lembra que a obra já se encontrava escrita
há trinta anos. Muito antes, portanto, de se tornar lente de Matemática na
Universidade de Coimbra e antes também do Tratado da Esfera.
E em 1573 faz sair dos prelos de António
Mariz , devidamente corrigidas, as obras que havia publicado em Basileia, a que
o impressor junta o De crepusculis e o De Erratis Orontii, que tinham sido por
ele impressas em 1571, alterando nestas o último algarismo do ano de impressão,
como acima já se fez menção.
O Doutor Pedro Nunes, como o deixa
transparecer na carta nuncupatória do De crepusculis, datada de 17 de Outubro
de 1541, era uma pessoa que não gozava de muita saúde, pois aí se desculpa pelo
atraso na tradução de Vitrúvio, nos seguintes termos: “ Nam prae aduersa ualetudine inchoatum opus
et supra quam dimidiatum non absolui – Com efeito por causa da falta de
saúde não acabei a obra que havia começado e já ia a mais de meio”. Aliás, as
suas frequentes viagens de Coimbra para a corte também devem ter contribuído para
o seu enfraquecimento.
O Doutor Pedro Nunes veio a falecer a 11 de
Agosto de 1578, poucos dias após o tresloucado e trágico desastre de Alcácer
Quibir. Há quem diga que a sua morte foi precipitada pelo desgosto que, em
Janeiro desse mesmo ano, havia sofrido –a famosa história da “Dama da
Cutilada”. A qual se encontra descrita
por vários autores, entre eles , Duarte
Nunes de Leão, contemporâneo, e Alberto
Pimentel, em “ Portugal de Cabelerira”.
Por se tratar da descrição impressa mais antiga
que se conhece, e ser da autoria de um contemporâneo, vou transcrever o relato,
feito por Duarte Nunes de Leão ( 1530-1608), de quem mais à frente nos
ocuparemos:
“ E para que se veja que em toda a idade
tem as Portuguesas ânimos generosos, e varonis diremos o que pouco há aconteceu a algumas donzelas a que nem a
pouca idade nem o sexo feminil impedio a
execução de seus bons spiritos. Destas foi uma donzela moça de pouca idade per
nome Dona Guiomar que com seu pai o doctor Pero Nunez Cosmographo mór del Rei
estava em Coimbra. Esta tendolhe
promettido hum filho de hum cidadão seu vizinho que casaria com ella e
não comprindo sua promessa o mandou
citar perante o Bispo da mesma cidade que as preguntas lhe quis fazer na igreja
de S. João. E negando o mancebo a promessa que fizera, ella de improviso lançou
mão a hum caniuete de hum estojo que consigo trazia para seus lauores e lhe deu
uma grande cutilada pelo rostro. Feito isto se volueo ao altar pedidndo perdão
a Deos e despois ao Bispo. O qual a mandou depositar ate ver o que se hauia de
fazer no caso. E porque ella soube que todos parentes e amigos do ofendido e muita gente armada com
eles estalão na ponte do Mondego per onde suspeitauão que passasse para o
moesteiro de S. Clara onde seu pai a queria meter freira, ella com grande animo
se mandou leuar aas costas de hum trabalhador escondida em huma grande canastra em que leuaua para o dito
moesteiro de Sancta Clara cera e cousas para o officio da semana sancta,
animando ao que a leuaua que não temesse que Deos a quem ia seruir os
guardaria. E assi foi entre aquelles tantos homens armados ao moesteiro onde as
freiras que já tinham recado a esperauão com grande alvoroço: e hi stâ hoje
freira professa” ( Descrição do Reino de Portugal, Lisboa, Jorge Rodriguez,
1610, fól. 147 v.)
Quer Duarte Nunes de Leão, quer Alberto
Pimentel na sua citada obra, publicada em Pará , em 1875, não fazem menção do
ofendido. Foi por um manuscrito do século XVII, existente na Biblioteca da
Universidade de Coimbra, que ficamos a saber que se trata de Heitor de Sá. Este
manuscrito, que o Dr. Augusto Mendes Simões de Castro publicou em 1880, vem transcrito
na íntegra pelo Dr. J.M. Teixeira de Carvalho, que conclui que a cutilada
ocorreu em 18 de Janeiro de 1578 ( obr. cit. pág. 111 e sgs.).
Poucos meses antes da sua morte, tinha-lhe
chegado às mãos um pedido papal para que se pronunciasse por escrito sobre o
projecto de reforma do calendário gregoriano. “ Ainda em 3 de Agosto de 1578,
Monsenhor Roberto Fontana escrevia num ofício para Roma que, apesar dos
esforços empreendidos, o atraso na resposta de Pedro Nunes, singolarissimo in questa professione,
se devia à sua falta de saúde por estar velho e enfermo. Sobre esse assunto
ficaram apenas os ecos do que pensava Pedro Nunes transmitidos por Frei Luís de
Sotto Mayor numa carta enviada à corte, onde dá testemunho de que Pedro Nunes
por estar tão doente não pode tratar do assunto como desejaria. No entanto,
segundo afirmou Sotto Mayor, o ilustre matemático ainda lhe expressara
oralmente a sua opinião: < estando na cama muito doente pouqos dias antes
que morresse , me disse ser de parecer que se fizesse nenhuma mudança no
Kalendario>” ( Maria Teresa Lopes Pereira, Pedro Nunes, Em busca das suas
origens, Edições Colobri, 2009,
pág.127-8).
L E Ã O H E B R
E U
139- DIALOGHI DI
AMORE, COMPOSTI PER
LEONE MEDICO, DI
NATIONE HEBREO, ET
DIPOI FATTO CHRISTIANO.
ALDUS 1545.
O frontispício encontra-se ornado com a marca do
impressor, uma âncora com um delfim entre as letras AL e DUS. No verso do último fólio numerado vem
o cólofon com os seguintes dizeres: IN VINEGIA, NELL’ ANNO M D. XLV. IN CASA DE
FIGLIVOLI DI ALDO. Segue-se outro fólio em branco não numerado, ostentando no
verso a marca do impressor.
Este é um
exemplar da terceira edição da famosíssima obra do português Leão Hebreu. A
primeira edição saiu postumamente, em Roma, no ano de 1535 e a segunda, em
Veneza, no ano de 1541. Ambas se encontram descritas por Francisco Leite de
Faria na sua obra “Estudos Bibliográficos sobre Damião de Góis e a sua Época”,
sob os nºs 358 e 395.
Confrontando o
título deste exemplar com o que se segue, constata-se que este apresenta a
expressão “ ET DIPOI FATTO CHRISTIANO”. Expressão que
aparece pela primeira vez na primeira edição aldina, de 1541, tal como é
descrita por Leite de Faria, sob o nº 395. No entanto, no citado nº 358, vem
descrita a primeira edição com este título:
“ DIALOGI D’AMORE DI MAESTRO
LEONE MEDICO HEBREO”. Aliás, só naquelas duas primeiras edições aldinas é que
encontramos aquela expressão. Todas as edições posteriores a 1545, tanto
italianas, como francesas ou espanholas, e que muitas são, em nenhuma delas
aquela expressão se repetiu, como acontece com a que se segue, impressa também
em Veneza, mas não nos prelos que foram do famoso Aldo Manuzio.
Tanto neste
exemplar como no abaixo descrito, à portada segue-se um fólio com a carta
nuncupatória de Mariano Lenzi À EXCELSA SENHORA D. AURÉLIA PETRUCCI. Carta que já se encontrava na
primeira edição, como decorre da descrição de Leite de Faria. À carta, em ambos
os exemplares em apreço, segue-se o texto da obra, dividida em três diálogos,
que se estende por 261 fólios, numerados na frente, no que respeita ao
primeiro, e por 246, também numerados na frente, no que concerne ao segundo.
Tudo leva crer
que a introdução da expressão espúria ET DIPOI FATTO
CHRISTIANO se
deveu à dificuldade encontrada inicialmente na publicação da obra em Veneza,
pelo facto de o seu autor ser hebreu. Mas, como ficou referido, tal só
aconteceu nas duas primeiras impressões aldinas. A edição prínceps afasta
qualquer dúvida quanto a aventada conversão de Leão Hebreu ao Cristianismo,
como aquelas duas edições levaram a supor.
139- DIALOGHI
DI AMORE, DI
LEONE HEBREO MEDICO, DI NUOVO CORRETI ET
RISTAMPATI. IN VENETIA, Appresso
Nicolò Beuilacqua. M D LXXII.
A portada
ostenta, ao centro, uma bonita gravura, que deverá ser a marca do impressor, e
a palavra DIALOGHI encontra-se dentro de uma moldura. No verso do último fólio
numerado,traz o cólofon com os dizeres : In Venetia, Appresso
Nicolò,Beuilacqua, M D LXXII.
Na carta nuncupatória de Mariano Lenzi, não
deixa de ser estranha a relação que o mesmo
faz da cultura egípcia com as divindades romanas, quando escreve: “ Foi
antiquíssima usança dos escritores egípcios dedicarem a Mercúrio os livros
sagrados que escreviam, por isso que julgavam terem sido achadas por Mercúrio
todas as artes, todas as ciências, todas as coisas belas, e que a ele, como
descobridor das coisas todas, se deveria agradecer aquilo que o homem aprendia
ou sabia. Tal a razão por que Pitágoras e Platão e muitos outros grandes
filósofos foram aprender filosofia no Egipto, e geralmente a aprendiam nas
colunas de Mercúrio, que estavam todas cheias de ciência e de doutrina” ( Giacinto
Manuppella in LEÃO HEBREU, DIÁLOGOS DE AMOR , Instituto Nacional de
Investigação Científica, Lisboa, 1983, vol. II.
Será à tradução deste ilustre catedrático italiano, professor que
foi da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, que me reportarei, sempre que citar o texto dos
Diálogos).
140- PHILOSOPHIE D’ AMOUR
DE M. LEON HEBREU, TRADUICTE
D’ ITALIEN EN FRANÇOYS
PAR LE SEIGNEUR
DU PARC CHAMPENOIS. Avec
priuilege du Roy. A Lyon chez Guil. Rouille &Thibauld
Payen. M. D. LIX.
As três primeiras traduções francesas da obra de Leão
Hebreu foram impressas em Lyon. A primeira no mês de Janeiro de 1551, a segunda
no mês de Abril do mesmo ano e a terceira, a que pertence este exemplar, em
Janeiro de 1559, sendo o mesmo, o tradutor das duas últimas – Seigneur du Parc
Champenois. O texto da portada encontra-se emoldurado por uma bonita gravura. O
aviso ao leitor e o privilégio real, datado de 1550, vêm nas três últimas
páginas, depois do índice.Na página 3 vem um soneto em francês do tradutor e na
4 outro, mas em italiano, de M. Giovan Iacomo Manso Napolitano. Segue-se a
carta nuncupatória do tradutor, dirigida à raínha de França, Catarina de
Medicis.
Leão Hebreu
nasceu em Lisboa, não no ano de 1490, como escreve Reis Brasil na introdução da
sua tradução dos DIÁOLOGOS DE AMOR, mas
muito antes, como se mostrará.Naquela data, já se encontrava com seus pais em Espanha,
há vários anos. É que não nos podemos esquecer que, em 30 de Maio de 1485, é
lavrada sentença de morte, por traição, contra seu pai, Isaac Abravanel
(1437-1508), “mercador, morador em a nossa cidade de Lixboa”( Archivo Historico
Portugês,vol.II, pág.31 e segs.), que havia fugido para Espanha dois anos
antes, a seguir à prisão do duque de Bragança, D. Fernando,ocorrida em 29 de
Maio de 1483.
Da carta de 4
de Dezembro de 1480, ressalta claramente a ligação que houve entre Isaac
Abravanel, “ morador em Lixboa, nosso servidor”, e D. Afonso V, a quem
emprestou dinheiro, por várias vezes ( obr. cit. vol.IV, pág. 426 e segs.).
Aliás, a relação da família Abravanel com a corte já vinha do tempo de seu pai,
Judá Abravanel,”judeu, mercador, morador em esta cidade” ( obr. cit., vol. VI,
pág.363 e 437). O que levou Benzion Netanyahu a escrever:
“ Por aquela
altura , a figura mais eminente da elite judaica era Dom Judá Abravanel, pai de
Dom Isaac. É certo que, da sua actividade, não existe qualquer registo.No
entanto,o escasso material de que dispomos demonstra à saciedade que, na década
de sessenta, era Dom Judá o chefe da comunidade judaica de Portugal, ao mesmo
tempo que dispunha de uma influência enorme e de ampla fama. Como a profissão
de Dom Judá não era, nem a de intelectual, nem a de rabino, a sua proeminência
no seio da comunidade deve ter sido o resultado de uma posição social e
política, ou, mais claramente ainda, resultado, das suas relações com a Corte.
Contudo, as suas ligações à Corte de nada valeriam sem o apoio do Duque de
Bragança, que gozava de uma influência determinante junto do rei, ao mesmo
tempo que detinha um poder determinante na governação. Podemos, pois, supor que
a amizade excpcional que, como teremos oportunidade de ver, iria marcar as
relações de Dom Isaac com os príncipes de Bragança, provinha de uma
ininterrupta relação familiar iniciada por Dom Judá, seu pai, na época do
primeiro Duque de Bragança. “
“ Filho de um
poderoso cortesão judeu, Isaac foi-se acostumando, desde a infância, a visitar
os paços dos reis e os príncipes.Daí que o rumo da sua educação tenha sido no
sentido de Isaac se adequar ao estrato social em que a sua família vivia, e no
sentido de se preparar para assumir, no futuro, os deveres e as responsabilidades
de seu pai” ( DOM ISAAC ABRAVANEL,
Estadista e Filósofo, Tenacitas, pág.55-6).
Como ressalta
claramente do libelo acusatório, Dom Isaac Abravanel mantinha uma forte ligação
com a Casa de Bragança. “ Assy polla muita amizade e comverssaçam que o dito
isaque Bravanel tinha com o Duque que foy de Bragança e com seos irmaãos, e a
benfeitoria que elle ouve do dito Duque, e como elle fogio e se amoorou destes
nosos regnos pera os de Castella, honde ora anda, sem mais querer vir e tornar
pera estes regnos, sem embargo de lhe mamdarmos escrever que viesse, e se tornasse pera elles com sua
segurança, o que nunca quis fazer, pollo qual se conclude que elle era sabedor
e trautador da maldade e da traiçam, que o dito Duque tinha trautada ,
machinada e conspirada contra nos, e contra nosso Real estado, e contra o bem,
paz e assesseguo destes nossos regnos, mamdamos que o dito Isaque Bravanell
moyra cruell morte natrurall, e tanto que for achado e avido nestes regnos,
logo seja emforcado e moyra na forca, e avemos por confisacados todos seos bens
movees e de raiz pera a coroa dos ditos nosos regnos, aaquall todo dereitamente
pertence” ( Arch. Hist. Port. Vol. II, pág.33).
Tudo leva a
crer que é Isaac Abravanel, o “ quynto Abrauanell”, mencionado no Cancioneiro
Geral de Garcia de Resende, tanto mais que adiante alude a “ os qu’andam por trayçam/ fora do rreyno
lançados” ( Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, edição do Dr. E. H. v.
Kausler,vol.I, Stuttgart, Geduckt auf Kosten des literarischen Vereins, 1846,
pág. 50-1).
Quando, em
1483, Dom Isaac Abravanel foge para Espanha com a família, Leão Hebreu, o filho
mais velho, teria 18 anos de idade. Pois, como nos dá a conhecer o renomado
Prof. Joaquim Carvalho, JUDÁ- mais tarde Leão - terá nascido, em Lisboa, em
1465 ( Leão Hebreu, Filósofo,Imprensa da Universidade, 1918,pág.6). E aquele
grande catedrático da Alma Mater coimbrã mais adiante escreve: “ Nascendo rico,
rodeando-o no lar paterno um ambiente intelectual, não surpreende que
inclinasse para a vida contempletaiva consagrando a mocidade ao estudo. O pai
ensinou-lhe os primeiros conhecimentos da literatura árabe e hebraica
peninsular, familiarizando-o com a lei, e o médico português, João Sezira,
amigo de Isaac, iniciou-o no estudo da astronomia e medicina, as duas sciências
que os sefardim tanto cultivaram. Nos Diálogos
de Amor citam-se as sete artes liberais, constituintes do trivium e quadrivium .( obr. cit.,
pág.12). Este ilustre professor não aceita que o Jehudah ben Ischag Abarbanel,
de Lisboa, que, nos finais do século XV, no dizer de Maximiniano de Lemos (
História da Medicina em Portugal, vol.I, pág.83), exercia a medicina, fosse o
nosso Leão Hebreu, em virtude de não ter mais de 18 anos ( obr- cit. , pág.13).Não
nos podemos esquecer que o grande Amato Lusitano,quando ainda não tinha 18
anos, já exercia a medicina nos hospitais de Salamanca, a pedido dos seus
professores, como em devido tempo se deixou escrito ( vol. II, pág.212). Por isso,
não é de excluir que se trate do filho de Isaac Abravanel, que, na verdade, foi
médico. Aliás, Leão Hebreu, no seu poema autobiográfico,que, em português, tem
o título de Lamentação contra o Tempo,
escreve “ Quanto a mim ele( D. João II) fez-me despojar de todos os meus bens ,
tendo-me tirado toda a minha fortuna inteira ( tudo o que eu possuía), em ouro
e prata”.( Diálogos de Amor, na tradução de Reis Brasil, vol. 2º, pág. 365-6).
De onde se infere, com toda a segurança, que, apesar de jóvem, Leão Hebreu
tinha não só maturidade para ser médico, mas também já tinha fortuna pessoal.
Uma vez em
Espanha, a família Abravanel, liderada pelo seu patriarca, Isaac Abravanel, ao
fim de poucos anos já se encontrava numa posição muito semelhante à que havia
conquistado em Portugal. Isaac Abravanel torna-se o homem das finanças dos reis
católicos e o próprio financia a empresa bélica para a tomada de Granada aos
mouros,que culmina com a rendição destes em 2 de Janeiro de 1492. O filho Judá
Abravanel , que então passou a chamar-se Leão ( o que terá a ver com o facto
de, na Bíblia, a tribo de Judá ser comparada a um leão) começou a gozar de
grande prestígio como médico e passa
a estar ao serviço pessoal dos
reis católicos.
E tudo corria
de feição, em Espanha, à família Abravanel, até que, em Granada, em 31 de Março
de 1492, foi lavrado o édito da expulsão dos judeus . Os que se não
convertessem, teriam que deixar os reinos de Espanha até 31 de Julho. A família Abravanel não se converte, preferindo ser novamente despojada dos seus bens e partir para outras terras. Só
que, para Portugal, estava-lhe vedada a entrada, pelo menos ao seu patriarca,
sobre quem pendia uma senteça de morte desde 1485. Conhecedores dessa sua
situação, os reis católicos tudo fizeram para conseguir a sua conversão.
Chegaram ao ponto de, secretamente, prepararem o baptismo do filho mais velho de
Leão hebreu, com um ano de idade, na esperança de que toda a família o fizesse.
Tendo sido alertado da armadilha por um amigo, Leão Hebreu envia o bébé com a
ama para Portugal, possivelmente para casa de sua irmã, na esperança de,
depois, o ir buscar e levar para Itália, terra que já tinham escolhido como
destino. Mais tarde, Leão Hebreu chorará copiosamente o destino deste seu filho,
na Lamentação contra o Tempo:
“ Tendo-me
nascido dois rapazes, dois filhos que são as minhas delícias, duma beleza rara,
a de uma gazela;
O mais novo, a
quem dei o nome de Samuel, foi reclamado,cedo, pelo Tirano que me espreita;
20- Ele feriu-o com a idade de cinco anos,
acabrunhando-me com um forte acréscimo de penas e de tormentos;
Quanto ao mais velho, a quem dei o nome de Isaac-
Abrabanel, era também como a rocha de que eu fui talhado;
Com o mesmo nome de seu avô, esse homem grande em Israel,
esse filho de Jessé que é a Luz do Ocidente.
Ai! Logo que ele chegou à idade de um ano, imediatamente
meu pérfido Inimigo o atirou para bem longe de mim.
25- Quando a Diáspora de Sepharad foi expulsa, o rei deu
ordem para me ser feita uma emboscada de prisão ou retenção:
A fim de me impedir de deixar o país e de passar para
além das suas fronteiras, determinou mandar tirar-me o meu filho, aquele que
chupava o meu leite,
Para o converter à sua Fé, a ele; contudo eu fui
advertido disso por um de meus amigos, homem de bem.
Eu mandei-o rapidamente enviar , na plena escuridão da
noite, com sua ama,como se fosse caso de uma criança roubada, para Portugal……
Depois da morte deste rei ( D. João II) apareceu um rei
insensato,devoto, de espírito cheio de nulidades ( D. Manuel).
Este constrangiu toda a comunidade de Jacob, todos os
filhos da minha nobre Nação a converterem-se;
Numerosos foram os que se entregaram à morte, para não se
exporem à transgressão da Lei do meu Deus, aquele que me engrandece.
Foi então que se tiraram as delícias da minha alma e que
se trocou o seu glorioso nome, aquele mesmo do meu Rochedo de origem.
Hoje , ei-lo já com a idade de doze anos, sem que eu o
tenha tornado a ver: por causa da falta que pesa sobre mim.
Tenho vontade de gemer. A minha afronta cai sobre minha
própria cabeça, a minha queixa volta-se contra minha própria alma;
Porque fui eu quem o fez fugir de um perigo para uma
cilada; tirei-o das brasas para o precipitar nas chamas…..
Deixa-me , portanto, que eu retome a palavra ,
dirigindo-me a meu único filho:…” ( Reis Brasil, obr. cit. pág.364-9).
Por este poema
elegíaco de Leão Hebreu, ficamos a saber que teve dois filhos. O mais novo, de
nome Samuel, morreu, quando tinha cinco anos, e o mais velho, nascido em 1491,o
bébé acima referido, encontrava-se ainda em Portugal, quando tinha doze anos,
isto é, em 1503, data em que o poema deve ter sido escrito, encontrando-se então
a família Abravanel em Itália, para onde se tinha dirigido, antes de 31 de
Julho de 1492. Ao chamar-lhe “único filho”- o outro tinha já morrido -,
conclui-se que Leão Hebreu não teve mais filhos, para além daqueles.
Na sua elegia,
Leão Hebreu alude ao decreto de 1497, em que D. Manuel determinava que todos os
filhos dos judeus, meninos ou meninas, com idade inferior a 14 anos, lhes
fossem retirados e distribuídos por vilas e lugares do reino, onde à sua
própria custa mandava que os criassem e doutrinassem na Fé de N. Salvador Jesus
Cristo ( Damião de Góis, Chronica de D. Manuel, Primeira Parte, Cap. XX, fól.
11, Antonio Alvarez, 1619).
Montaigne, ele
próprio de ascendência judia, transcreve na integra, na versão francesa, o
relato chocante que “l’Evesque Osorius, non mesprisable historien latin”, faz
desses acontecimentos, no primeiro livro da sua obra “De Rebus Emmanuelis Gestis” ( Essais de
Montaigne, Liv. I, Cap.XL, tomo I, pág.263-4, da edição de Paris de 1725).
Há quem avente que aquele filho, mais tarde,
em 1506, voltou para o pai, fixando-se na Turquia ( Pinharanda Gomes, A
Filosofia Hebraico-Portuguesa,I,
pág.322), mas também há quem afirme haver documentação demonstrativa de que
aquele filho de Leão Hebreu recebeu o nome de Henrique Fernandes e que mais
tarde casou com uma tal Inês Fernandes ( João J. Vila-Chã in História do Pensamento Filosófico Português,vol.II,
pág.208). Quanto à sua deslocação para a Turquia naquele tempo, é de todo
improvável. Já o seu eventual casamento não é, de forma alguma, de pôr de
parte.No entanto, a fonte indicada pelo autor não fornece os elementos
carreados para o texto. De qualquer forma, mesmo que fosse verdadeiro, tal não
afasta a possibilidade de, mais tarde, depois de casado, ter ido ao encontro da
família exilada, ter adoptado o seu verdadeiro nome, como aconteceu com vários
judeus portugueses ilustres e ter dado ao filho o nome do seu pai, como adiante
se verá.
Sem o filho
Isaac, mandado para Portugal, Leão Hebreu acompanha o pai e o resto família no
exílio para Itália, tendo chegado a Nápoles durante o mês de Setembro de 1492.
Reinava então em Nápoles Fernando I,conhecido por Ferrante, que tinhá como seu
primeiro ministro o maior humanista do século XV, Giovani Pontano ( ver vol.II,
pág.14). “ Se a extensão da viagem há-de ter aumentado os sofrimentos de muitos
dos seus camaradas, o acolhimento que acabaram por receber da parte do rei de
Nápoles dissipou-lhes muitas das penas por que passaram. Ferranre manteve a sua
afabilidade, e até mostrou uma consideração especial em relação a Abravanel (
Isaac), ao oferecer-lhe um convite para a Corte e mesmo um lugar ao seu serviço”.
“ Na Corte de Ferrante, Abravanel deve ter
ficado numa posição de importância. Também desta vez, a sua posição parece ter
andado ligada a alguma actividade financeira. Anos mais tarde, ao descrever a
sua situação em Nápoles, Abravanel afirma que a sua riqueza cresceu imensamente
e que se tornou tão famoso como os maiores magnatas do país.Com efeito,dois anos
após a sua chegada, Abravanel já gozava da maior confiança como cortesão do
séquito do rei de Nápoles “ ( Benzion Netanyahu, obr. cit. ,pág.110).
Durante a sua
permanência em Nápoles, Leão Hebreu deve ter frequentado a Academia Pontaniana,
onde pontificava Giovani Pontano, o seu verdadeiro fundador.Mas, em Agosto de 1494,
Carlos VIII, de França, invade a Itália e, em Fevereiro do ano seguinte, entra
Nápoles. Segundo o embaixador francês, Philippe de Comines ( 1447-1511), o rei
francês entrou em Nápoles no dia 22 de Fevereiro, no meio dos aplausos do povo
( Las Memorias de Felipe de Comines Señor de Argenton, Amberes, Juan Meursio,
1643, Tomo II, cap.149, pág.263). No entanto, os bairros judaicos são saqueados
e os judeus fogem da cidade. A família Abravanel divide-se. O patriarca, Isaac,
acompanha o rei Afonso II, que havia sucedido a seu pai, Ferrante, falecido em
25 de Janeiro de 1494, e vai para a Sicília. Leão Hebreu vai para Génova e a
restante família dirige-se para Tessalónica, onde se encontrava Samuel, o filho
mais novo de Dom Isaac . O qual havia de falecer em Ferrara, por ter ingerido
pílulas de escamónea, como nos relata Amato Lusitano –“ ut Venetiis uidimus et
Farrariae in Samuelo Abarbanelio, qui ob epotas sic pilulas uitam cum morte
commutauit” ( IN DIOSCORIDIS ANAZARBEI DE MEDICA MATERIA LIBROS QUINQUE ENARRATIONES… Argentorati, VVendelinus Rihelius,
Lib. IV, en. 171, pág.478).
Como se deixou
dito no volume segundo deste modesto trabalho (pág. 223-4), Amato Lusitano
conta-nos que teve em suas mãos um manuscrito, que se encontrava em poder de
Juda Abarbanel, neto de Leão Hebreu, com o título “ De Coeli Harmonia”, que o avô
havia escrito a pedido de Pico de Mirândola. Tendo em conta que Giovani Pico
della Mirandola faleceu em Florença, em 17 de Novembro de 1494, teremos que
concluir que Leão Hebreu, durante a sua estadia em Nápoles, conheceu e
contactou aquele célebre humanista. O que também demonstra as suas já estreitas
relações com os círculos neoplatónicos, apesar do pouco tempo decorrido após a
sua chegada àquela cidade. É verdade que não podemos excluir que tenha tido contactos
com o célebre humanista,também na sua condição de médico, tendo em conta que
Pico de Mirândola morreu aos 31 anos de idade.
Giacinto
Manuppella, ao comentar aquele texto de Amato Lusitano, esclarece que, neste
caso, a palavra latina nepos-nepotis deve
ser traduzida por neto e não sobrinho (
obr. cit., vol. I, pág.582).É que Amato Lusitano, ao refrir-se ao filho de seu
irmão, Pedro Brandão, escreve Bradanus
nepos meus-meu sobrinho Brandão ( ver vol.II, pág. 205). Ora,afirmando Leão
Hebreu, no seu poema elegíaco, que o filho, ido para Portugal, era naquela
altura- 1503 – o seu único filho, o Juda Abarbanel, de que fala Amato Lusitano,
como sendo neto de Leão Hebreu, só pode ser filho do seu tão querido Isaac
Abravanel, que tanto chorou.Na data em que o filho, a nora e o neto, com dez
anos, foram vistos por Amato Lusitano (1560), Isaac teria, se fosse vivo, 69
anos de idade. O filho e a família tinham vindo de Tessalónica, onde, em 1495,
se encontrava Samuel, o irmão mais novo de Leão Hebreu, como acima se deixou
dito. Para Tessalónica foi, com toda a probabilidade, casado ou solteiro, o
filho querido de Leão Hebreu, já outra vez judeu, e ali poderá ter nascido, por
volta de 1530, aquele neto, que acabou por morrer,como nos relata o médico
albicastrense. O qual tinha o nome do avô, à semelhança do pai. E este, com
toda a probabilidade, encontrou-se com o filho, que andou perdido. Só assim se
explica que o neto tenha em seu poder um manuscrito do avô.
Giacinto
Manuppella na mencionada página também refere que o Pico de Mirândola, citado
no aludido manuscrito de Leão Hebreu, não pode ser o famoso humanista, por o mesmo
ter falecido em 1494.Deve referir-se ao sobrinho Gianfrancesco Pico della
Mirandola.O tio faleceu efectivamente em 1494, não em Janeiro,mas em 17 de
Novembro, como acima se deixou dito. Por isso, não é de estranhar que Leão
Hebreu,em comsequência, sobretudo, da função assumida pelo pai na corte de
Nápoles, se tivesse relacionado cedo com aquele grande humanista, que era o
homem, de fora de Nápoles, de quem se falava na altura.Só assim se compreende
que Amato Lusitano a ele se referisse, usando a expressão “ diuinus
Mirandulensis Picus”. Expressão que não teria utilizado, com toda a certeza, se
tivesse em mente o sobrinho.
A ida de Leão
Hebreu para Génova deveu-se ao facto de aquela cidade, do norte de Itália, ter
sido o refúgio dum grande número de judeus em 1492, e também um centro cultural
importante. Aí exerceu a sua profissão de médico e aí escreveu, com toda a
probabilidade, a sua obra perdida “ De Coeli
Harmonia”, que Pico de Mirândola lhe havia pedido, e começou a escrever
a sua mais famosa obra “ Os Diálogos de Amor”. Pois, no diálogo primeiro, ao
falar das estrelas, refere-se às navegações dos Portugueses e Espanhóis nestes
termos: “ Desconhecemo-las durante milhares de anos, ainda que presentemente se
tenha alguma notícia delas em virtude da recente navegação de Portugueses e Espanhóis
( Giacinto Manuppella, pág.34). E, no diálogo segundo, escreve: “ e é possível
que na outra parte, de nós não conhecida, se encontrem mais estrelas fixas no
céu e mais lugares habitados na Terra: em nossos tempos, a experiência da
navegação dos Portugueses e Espanhóis nos tem revelado parte disto” ( obr. cit.
pág.77). Já o diálogo terceiro está a escrevê-lo, em 1501, como claramente
ressalta deste texto: “ Estamos, segundo a verdade hebraica, a cinco mil
duzentos e sessenta e dois anos do princípio da Criação” ( obr. cit. pág. 221).Que
corresponde ao ano de 1501 da era cristã. Só que, então, Leão Hebreu já se não
encontrva em Génova. Pois,daí tinha saído, em princípios de 1501, em consequência
dos éditos, contra os judeus, aí publicados.
Leão Hebreu
dirige-se para Monopli, no Adriático, onde se encontrava seu pai, na esperança
de o convencer a deslocar-se para Barletta, cidade pertencente ao reino de
Nápoles, onde, estava convencido, ambos poderiam dedicar-se tranquilamente às
suas actividades. Mas, datada de
Nápoles, 10 de Maio de 1501, o rei da Sicília ,Federico, faz chegar-lhes uma carta a solicitar a presença naquela
cidade de Dom Isaac Abravanel e de seu filho, o médico Leão ( Giacinto
Manuppella, obr. cit.,vol.I, pág.578 ). A família Abravanel regressa a Nápoles.
Contudo, Dom Isaac pouco tempo aí permanecerá, pois a sua preocupação, em
publicar as obras que havia escrito, leva-o para Veneza. Pelo menos, em 1504,
já aí se encontrava há algum tempo. Pois, os venezianos, alarmados com os
prejuízos que os portugueses lhes estavam a causar no negócio das peciarias,
resolvem negociar com D. Manuel, por intermédio de um judeu chamado Habravanel,
a viver naquela cidade (Geronymo Çurita, Historia del Rey Don Hernando el
Catolico,Çaragoça, Domingos de Portonariis, 1580, Liv. V, cap.LXXX, fól. 342). O
judeu chamado Abravanel só podia ser Dom Isaac, o financeiro, o diplomata, o
filósofo, que aí morre, em Novembro de 1508 ( Benzion Netanyahu, obr. cit. pág.
134). O filho, esse permaneceu em Nápoles, agora numa situação previlegiada,
oferecida pelo “ meu Rei”, como lhe chama no seu nomeado poema elegíaco.
Como já se
referiu, Leão Hebreu, naquele seu poema, diz-nos que o seu querido filho Isaac
tinha 12 anos de idade, quando o escrevia, o que significa que estávamos no ano
de 1503, uma vez que havia nascido em 1491, pois, tinha um ano, em 92. Daí se
infere que se encontrava em Nápoles, quando escreveu o poema e também aí deve
ter concluído o terceiro diálogo da sua famosa obra, o qual estava a ser
redigido em 1501, como acima se deixou escrito.
Em 1503, os
franceses são definitivamente derrotados e expulsos do reino de Nápoles pelo exército
espanhol, comandado por Gonçalo Hernandez de Córdova, “El Gran Capitan”, que “
entro en Napoles a diez y seys de Mayo” , no meio de grandes festejos populares
( Geronymo Çurita, obr. cit.fól.286). O qual, por certo, conhecia a família
Abravanel, da passagem desta por terras de Espanha. Por isso, não é de
estranhar que vá buscar Leão Hebreu para seu médico pessoal. Cargo que exerce
enquanto o Gran Capitan se mantem no poder.
O Pontífice
Júlio II (1503-1513), o papa guerreiro, tencionava nomear o “Gran Capitan”
capitão-general da Igreja, o que o rei católico, Fernando, não aceita, alegando
que pretendia cumulá-lo de honrarias, até porque tinha intervido na tomada de
Granada aos mouros,e leva-o consigo para Castela, em 1507 ( Geronymo Çurita,
Los Cinco Libros Postreros de la Historia del Rey Don Hernando el Catolico,1580,
Lib.VII,Cap.XLIX, fól. 128).
Leão Hebreu,
mais uma vez, deixa Nápoles, onde, após a chegada do rei católico, em 1506,e
por acção do mesmo, as condições de vida dos judeus se tinham degradado. Põe-se
a caminho de Veneza, ao encontro de seu pai. Este “ tinha recebido da parte de
Saúl Cohen, natural da ilha de Creta e discípulo do filósofo Elias Delmedigo,
uma série de perguntas filosóficas juntamente com o pedido de que as mesmas
fossem consideradas não apenas poer ele pessoalmente, mas também pelo seu
filho, o nosso Leão Hebreu. O autor da
carta faz menção da fama que Judah Abravanel tem, devido quer ao seu enorme
conhecimento da filosofia dos gregos em geral e de Aristóteles em particular,
quer à sua versatilidade no que respeita à “interpretação alegórica” da
sabedoria dos antigos, tal como para nós está perfeitamente patente no texto
tanto do segundo como do terceiro dos Diálogos. Depois de lhe ter submetido as
questões que lhe foram propostas pelo seu interlocutor de Creta,particularmente
que dizia respeito à difícil questão da matéria-prima (prote hyle), é
absolutamente indisfarçável o orgulho com que na sua resposta Dom Isaac se
refere ao seu filho Judah, colocando-o expressamente entre os mais distintos
filósofos da Itália do seu tempo” ( João J. Vila-Chá, obr. cit., pág. 227).
A partir daqui
quase perdemos o rasto a Leão Hebreu. No entanto, sabemos que seu irmão José
também vive em Veneza e seu irmão Samuel, que, entretanto casara com Benvenida
Abravanel, vive em Ferrara, onde falecerá, como nos deixou dito Amato Lusitano.
Por isso, não será de estranhar que Leão Hebreu, não tendo ainda chegado de
Portugal o seu querido filho Isaac, fizesse a sua vida entre aquelas duas
cidades.
Por Geronymo
Çurita sabemos que em 1515 o reino de Nápoles é integrado na Coroa de Castela e
que, no ano seguinte, Don Ramon de Cardona
é vice-rei de Nápoles ( obr. cit, Lib. X, fól. 389 e segs.). Por sua
vez, Giacinto Manuppella transcreve um documento, proveniente do Arquivo de
Nápoles, em que o vice-rei Dom Ramon de Cardona - e não Raimundo de Cordoba, como o autor
refere – isenta do pagamento de tributo a “ maestre leon abrauanel medico y su
casa y todos los que son comprehendidosen su guiage que tien particular no sean
compreendidos en este tributo( obr. cit. I vol., pág. 579). Deste texto infere-se que Leão Hebreu
regressou a Nápoles, pela terceira vez, depois daquela data, e que, tudo leva a
crer, o seu amado filho já se encontraria em sua companhia, uma vez que o
documento fala em sua casa, o que pressupõe que Leão Hebreu não viveria apenas
com a esposa. Mas o ilustre professor da Universidade de Coimbra transcreve
ainda na página seguinte vários extractos do diário do cronista veneziano
Marino Sanudo, relativos a 1521, onde se alude a “ maestro Lion hebreo medico
dil Vicerè”. Por isso, embora não saibamos a data em que regressou a Nápoles, temos documentos, que atestam a sua presença
naquela cidade, no ano de 1521, exercendo a profissão de médico. Contudo, não
podemos esquecer que, em Março de 1522, morre Don Ramon de Cardona. Por isso, é
legítimo pôr em causa a permanência de Leão Hebreu em Nápoles, depois da morte
daquele vice-rei. No entanto,daqui para a frente, nada mais sabemos da vida de
Leão Hebreu, nem da sua morte: quando e onde morreu. Sabemos tão só que, em
1535, são impressos, em Roma, os seus famosos DIALOGI D’AMORE, por intermédio
de Mariano Lenzi. Este, na carta nuncupatória, dirigida à Excelsa Senhora D.
Aurélia Petrucci, escreve: “ porque,
tendo eu arrancado das trevas em que jaziam sepultos e de certo modo trazido à
luz clara do dia estes seus divinos DIÁLOGOS que encomendei ao nome de tão
excelsa Senhora…( Giacinto Manuppella, obr. cit.volume II, pág.2). Deste texto
decorre, manifestamente, que Leão Hebreu já havia falecido há vários anos, pois
a sua obra encontrava-se, não se sabe em que mãos, mas completamente esquecida .
O que não deixa de causar estranheza, quando nos lembramos do que nos narra
Amato Lusitano na sua Séptima Centúria, e acima referido, a propósito do neto. Os
seus biógrafos situam a sua morte em finais da década de vinte, com
desconhecimento do local.
No século XVI,
a obra de Leão Hebreu teve, pelo menos, 9 edições italianas, 6 francesas, 5
espanholas e 2 latinas. A primeira portuguesa, é a de Reis Brasil, acima
citada, de 1968, mais de quatro séculos depois!
Na redacção da
sua obra, Leão Hebreu adoptou a forma dialogal, muito comum nos escritores do
renascimento, em que são interlocutores Fílon e Sofia.
Não me sinto
com capacidade e engenho para tecer qualquer comentário aos “ divinos”
DIÁOLOGOS DE AMOR, como os definiu Amato Lusitano. Mas não resisito à tentação
de transcrever uma passagem do Diálogo II e um comentário do Prof. Joaquim de
Carvalho:
Sofia- Gosto de todas estas causas das
ficções poéticas. Mas diz-me: Platão e Aristóteles, príncipes dos filósofos,
porque não quis um deles ( embora tivesse usado a fábula) servir-se do verso,
mas somente da prosa, e o outro nem verso nem fábula usou, mas sim a exposição
didática?
Fílon- Nunca são os pequenos a infringirem
as leis, mas unicamente os grandes. O divino Platão, querendo ampliar a
ciência,arrancou-lhe um ferrolho,o do verso,mas não lhe tirou o outro da
fábula; de maneira que foi ele o primeiro que infringiu parte da lei da
conservação da ciência, mas ainda a deixou de tal modo hermética com o estilo
fabuloso, que bastou isso para a sua conservação. Aristóteles, masi afoito e
desejoso de ampliação, com novo e original processo e estilo na exposição, quis
tirar também o ferrolho da fábula e romper totalmente a lei da conservação, e
expôs em prosa, num estilo científico, os assuntos da Filosofia. É bem verdade
que usou de tão admirável artifício no dizer tão sucinto, tão compreensivo e de
tão profunda significação que isso bastou, em lugar do verso e da fábula, para
a conservação das ciências. Tanto assim que, ao responder ao seu discípulo
Alexandre Macedónio, o qual lhe tinha escrito estar admirado que tivesse
tornado públicos os livros tão secretos da sagrada Filosofia, disse-lhe que os
seus livros estavam publicados e não publicados: publicados apenas para aqueles
que os tinhem entendido por intermédio dele. Por estas palavras notarás, ó
Sofia, a dificuldade e o artifício que existem no falar de Aristóteles. ( pág.
91, da tradução de Giacinto Manuppella).
“ Crente como
era, aceitando a herança hebraica, religiosa e filosófica, concede a supremacia
à fé, tanto mais que ela constitue de per si um saber suficiente e um critério
seguro na solução das antinomias entre o seu conteúdo e o de qualquer sistema
filosófico. Depende, é certo, o seu pensamento, por mais dum conceito, de
Platão e Aristóteles; mas assimilando-os, acentuou a concordância destas
capitais correntes da especulação hebraica com a Bíblia, suma de toda a
sciência natural e espiritual, embora tivesse de forçar textos e por vezes
decaísse no mais pueril concordismo. Não se pense, porém, que êste fideísmo
envolva a negação da filosofia. De modo algum; e até, pelo contrário, alarga o
seu conceito. A verdade, pela universal unidade da sua essência, devêm
complexa, de mil faces, compreendendo desde o empirismo mais positivo até ao
misticismo mais exaltado. Identica sempre
e pela origem divina prefixada, pode o homem pelas luzes naturais
atingi-la, ou, mais precisamente, encontra-la ( que não descobri-la). Razão e
fé são assim as duas vias da verdade no espírito humano: quando se encontram,
harmonizam-se pela identidade de conteúdo, quando divergem, a razão cede à
claridade da fé” (Prof. Joaquim de Carvalho, obr, cit. pág.63-4).
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